quinta-feira, 5 de junho de 2008

Factus de matéria, cinis elementi.

"'Não posso convencer-me', escreveu Darwin, 'de que um Deus benéfico e onipotente tenha criado propositalmente as Ichneumonidae com a intenção expressa de que estas buscassem o seu alimento no interior do corpo vivo das lagartas'. Na verdade, a perda gradual da fé por parte de Darwin, que ele dissimulava com medo de aborrecer sua devota esposa Emma, tinha causas mais complexas. Sua referência às Ichneumonidae era aforística. Os hábitos macabros aos quais ele se referiu são compartilhados por suas primas, as vespas cavadoras, as quais encontramos no capítulo anterior. A fêmea da vespa cavadora não apenas põe seus ovos numa lagarta (ou gafanhoto ou abelha) para que suas larvas alimentem-se de seu corpo, mas, de acordo com Fabre e outros, ela cuidadosamente dirige seu ferrão para cada um dos gânglios do sistema nervoso central da presa, de modo a paralisá-la mas não matá-la. Deste modo, a carne mantém-se fresca. Não se sabe se a paralisia funciona como uma anestesia geral ou se ela funciona como o curare que simplesmente suprime a habilidade que a vítima tem de mover-se. Se este for o caso, a presa pode estar consciente de estar sendo comida viva a partir de seu interior, mas é incapaz de mover um músculo para fazer qualquer coisa a respeito. Isto parece selvagemente cruel mas, como veremos, a natureza não é cruel, apenas implacavelmente indiferente. Esta é uma das lições mais duras que os humanos têm de aprender. Não podemos admitir que as coisas possam ser nem boas nem más, nem cruéis nem carinhosas, mas simplesmente cruas – indiferentes a todos os sofrimentos e sem nenhum propósito."

(Richard Dawkins, O Rio Que Saía Do Éden.)

***

Foi exatamente nesse texto que pensei quando, no início desta semana, uma médica do SUSto, no meio da consulta, em uma conversa off-topic, quis me demover do ateísmo com base em que “tudo é divino, maravilhoso e, portanto, não pode ser obra do acaso”. Sim, a tal “complexidade irredutível” que os criacionistas disfarçam de ciência com o tal design inteligente (pfff). Pensei em Darwin, Dawkins, nas vespas-cavadoras, até em crianças com paralisia cerebral. Mas fiz cara de tolerante e fui que fui (aliás, fiquei que fiquei). Não tenho como trocar de médico porque o SUSto te desencaminha de acordo com a região – e minha região sequer tem esse especialidade, eu sou deslocado para outra região.

Vida de ateu não é fácil.

_Como você pode achar que a vida é só isso? Não pode ser?

_E você vive assim, sem sentido?

_Você é tão inteligente... por que é ateu?

_Você é uma pessoa tão boa, como pode ser ateu?

_Ah, você não é ateu de verdade... lê a Bíblia, freqüenta fóruns de religião, carrega de simbologia religiosa seus textos...

_Você é crente sim, só não descobriu ainda.

_Você substitui Deus pela crença nesse Sartre aí, nesse Camus. Ateísmo é uma crença. [N.: tanto quanto “careca” é uma cor de cabelo.]

E por aí vai. As pessoas sequer entendem o que é ateísmo, como poderiam respeitá-lo? Parece ofensa, mas é só ignorância mesmo.

Então, primeiro, um desabafo/recado: não me venham com sentido da vida, busca pelo sagrado, complexidade irredutível ou qualquer coisa do gênero. Existe admiração com ceticismo, assim como espiritualidade e ética sem religião. E nenhum sistema filosófico serve de muleta como as religiões.

Antes mesmo do episódio da médica, um dia eu até me peguei pensando, ao contrário de outros tempos, quando eu avisava, a quem estivesse ingressando, que não era fácil, uma quase-felicidade por ser ateu e materialista. Sim, porque a angústia existencial é também dolorosamente fascinante, toda a magnífica gratuidade, o esplendor das sem-razões do Universo, o fato de sermos todos feito da mesma poeira cósmica, das mesmas partículas que fervilharam no núcleo de estrelas iridescentes no big-bang. Sim, ver beleza no caminho cheio de flores, pedras e descaminhos, na poética aridez da desesperança que jamais vira desespero; a liberdade de ser e de estar, de fazer o certo por achar certo e saber que é certo, não esperar aprovação de códigos morais canônicos nem recompensas “extracampo”. Sim, descobri que gosto de ser quem sou. Afinal escolhi ser assim. Ateu praticante ocidental. Quem preferir crer sem nenhuma transcendência, simplesmente por parecer mais cômodo, que permaneça no auto-engano. Não questiono nem discuto experiências de religiosidade, mas condeno e lamento por quem procura justificar a fé unicamente pelo medo e/ou pela comodidade do wishful thinking.

“Vivemos com o baralho viciado contra nós e depois morremos: é só isso? Nada a não ser um sono sem sonhos e sem fim? Onde é que está a justiça nisso tudo? É desolador, brutal, impiedoso. Não deveríamos ter uma segunda chance numa arena nivelada? Como seria melhor se nascêssemos de novo em circunstâncias que levassem em conta o nosso desempenho na última vida, por mais viciado que o baralho tivesse estado contra nós. Ou, se houvesse um julgamento depois da morte, então desde que representássemos bem as personalidades que nos foram dadas nesta vida, e fôssemos humildes, fiéis e tudo o mais – deveríamos ser recompensados vivendo alegremente até o fim dos tempos num refúgio permanente, longe da agonia e do turbilhão do mundo. Assim seria, se o mundo fosse ideado, pré-planejado, justo. Assim seria, se os que sofrem com a dor e o tormento recebessem o consolo que merecem. Dessa forma, as sociedades que ensinam a satisfação com o que temos na vida, na expectativa de uma recompensa post-mortem, tendem a se vacinar contra a revolução. Além disso, o medo da morte, que favorece sob alguns aspectos a adaptação na luta evolutiva pela existência, prejudica a adaptação em tempos de guerra. As culturas que falam de uma futura vida de recompensas para os heróis – ou até para aqueles que apenas cumpriram as ordens das autoridades – podem levar vantagem na luta. Assim, a idéia de que uma parte espiritual de nossa natureza sobrevive à morte, a noção de uma vida após a morte, deve ser algo que as religiões e as nações não encontram dificuldade em vender. Podemos antever que não será muito difundido o ceticismo a respeito dessa questão. As pessoas vão querer acreditar na vida após a morte, mesmo que a evidência seja escassa e até nula.”

(Carl Sagan, O Mundo Assombrado Pelos Demônios)

2 comentários:

majv disse...

tuas citações me fazem pensar.
li o teu primeiro livro, me identifiquei, e me assustei com o resto.
revelador.

Carolina Molina disse...

"Sim, ver beleza no caminho cheio de flores, pedras e descaminhos, na poética aridez da desesperança que jamais vira desespero; a liberdade de ser e de estar, de fazer o certo por achar certo e saber que é certo, não esperar aprovação de códigos morais canônicos nem recompensas “extracampo”. Sim, descobri que gosto de ser quem sou. Afinal escolhi ser assim"


Foi a melhro coisa que vc já escreveu sobre si mesmo.