segunda-feira, 7 de maio de 2007

No fim, todas as sociedades são julgadas por suas exceções e por seus extremos.

Esse título, excerto de Luís Fernando Veríssimo, tirado de sua coluna de ontem (6/5) do Estadão, serve perfeitamente para iniciar este post, sobre o qual venho reunindo informações que, infelizmente, insistem em se repetir. O que era um mais-ou-menos-breve comentário sobre o caso Champinha vai envolver aqui uma rasa tentativa de explicar e/ ou entender a questão da violência, pelo menos no Brasil.

Por algum milagre sociológico, não termos uma guerra civil generalizada. Já temos, há tempos e cada vez mais, os ingredientes para o caos: extrema desigualdade social, dividindo a população com um abismo entre ricos e pobres; gente para colocar lenha na fogueira dos dois lados.


A favela é a nova senzala, correntes da velha tribo.

Do um lado temos uma geração no limbo, no imenso vácuo onde o Estado não atua, e em cujas deficiências se aloja o crime. Crime alimentado pelo rancor, pelo ódio de uma população que paga impostos (proporcionalmente o mesmo tanto que os ricos), mas não recebe benefícios; que é espancada e humilhada pela polícia e não tem direito a uma oportunidade de emprego, a uma escola decente, a um atendimento médico minimamente humano.

Rancor e ódio de quem freqüenta transporte ruim, posto de saúde ruim, leva geral da polícia na ida para o trabalho e na volta dele e, no momento de descanso, é bombardeado com anúncios do tipo “Compre já seu carro zero quilômetro por ‘apenas’ cinqüenta mil reais”. Para quem vive de bicos e/ ou salário mínimo, isso é, sem dúvida, uma afronta.

Lógico que nada justifica o uso da força, mas isso, quase sempre, pode ser explicado. Já não bastassem essas condições propícias ao florescimento das sementes da violência, ainda temos grupos de rap que glamourizam a violência que supostamente condenam, além de resumirem todo o problema numa pueril luta de playboys versus manos.

Só com estes primeiros ingredientes já podemos fazer alguns lanchinhos: arruaceiros contra PMs toscos e psicologicamente despreparados em show dos Racionais MCs; o inesquecível Sandro (sim, ele tinha um nome e uma história), do ônibus 174; as chacinas que há todos os dias e para as quais ninguém mais liga.

Ou nossos queridos governos do PSDB/ PFL (PD), que, após as rampas antimendigo, querem colocar para fora da Sé, quando da visita do papa, os moradores de rua que lá habitam. Quer mais absurdo exemplo de exclusão social do que negar até a rua como moradia para cidadãos?

[Vale mencionar que todo governo brasileiro (seja de esquerda, direita, de cima, de baixo) é relapso com essas questões “de pobre”; a intenção aqui não é politizar a questão, mas citei os desgovernos de Serra e Kassab porque expulsar mendigo da rua já é um tanto demais, não? Mas continuemos.]

Onde o Estado não age, ou age mal, sobra espaço para criminosos, para álcool e demais drogas, para o ócio dos maus pensamentos. Altas taxas de desemprego, nenhuma opção de lazer próxima e um monte de botecos rodeados por pontos de tráfico. Cenários perfeitos para chacinas ou planejamento de crimes.


E a sala é a nova cela, prisioneiros nas grades do vídeo.

Do outro lado, temos pasquins como a Veja e programas do tipo TV-crime (Datena e afins) dizendo que bandido bom é bandido morto, massacrando o público com o João Hélio da vez (desde que seja de classe média ou acima, claro) em todos os ângulos, um mais sórdido que o outro. Vale tudo: de passar uma “reportagem” com a reconstituição do crime (Globo e Record) até estampar na primeira página a fotos dos acusados e a manchete “O que eles merecem?” (Jornal do Brasil). Agora é só atropelar o plebiscito contra o desarmamento, blindar o carro e se juntar, em algum condomínio fechado, aos outros cidadãos de bem, que espumam de ódio tanto nas redações de jornal quanto nos bares da moda contra a relé que insiste em não se colocar no devido lugar (o mais longe de nossos olhos, de preferência).

Nosso sistema de ensino antiquado e falido; nossa cultura de ler pouco e ler mal; nosso hábito de ver muita televisão, com seus programas histéricos cheios de pseudojornalismo e falsa indignação; nossa herança de desgovernos e políticos reacionários e corruptos que fazem todos pensarem que a violência é um fenômeno sobrenatural, que vem de fora da sociedade, como klingons belicosos; tudo isso faz com que as classes privilegiadas achem que não têm responsabilidade (o que é diferente de culpa) nesse imbróglio todo.

[Sim: eu que tenho um computador para escrever e você que tem um para ler fazemos parte da elite, em termos de Brasil. Todos temos telhado de vidro porque não fazemos nada prático. Mas isso é assunto para outra postagem, minha teoria sobre as revoluções.]

Chegamos a um ponto (como me advertiram dois amigos que me contaram desta notícia e outro que apontou a gravidade, digamos, teórica, da situação) em que temos, além de povo contra governo ou povo contra polícia, povo contra povo.

Estamos cada vez mais irracionais, mais intolerantes. É o verdadeiro cu do mundo.


E quem é que vai pagar por isso?

E onde entra o tal do Champinha, citado como motivo inicial do post, nesta história toda?

Vamos pegar o gancho da irracionalidade. Não a do bandido, mas a da sociedade. O tal Champinha voltou à mídia nesses dias porque fugiu da Febem, talvez até facilitado por funcionários, decerto na esperança de que alguém aqui fora “apagasse” ele, naquelas “resistências à prisão" em que o meliante leva uns quarenta tiros, vai saber. Mas o bom filho à casa tornou.

Embora ele seja um caso à parte, visto que, além de uma vida sofrida (e ainda lhe exigem uma compaixão e uma civilidade que nunca lhe foi oferecida), ele tem claros problemas cerebrais, sendo portanto um caso muito mais psiquiátrico que criminal (não é caso de cadeia e sim de internação), os “cidadãos de bem” já vêm rosnando com palavras-de-ordem como “pena de morte” e “redução da maioridade penal”, isso quando não chegam a termos como “matar esse animal”, “torturá-lo lentamente”, etc. Para conferir isso, basta pesquisar no Google e procurar qualquer debate sobre o assunto. Logicamente, além de cidadãos ordeiros e educados, devem ser quase todos piedosos cristãos.

Essa cultura do ódio e da paranóia em que vivemos nos cerra a vista para a dimensão completa dos eventos. Pegam-se fatos isolados para que a realidade fique mais simples, mais P&B; fica mais fácil de “entender” e de se eximir de qualquer responsabilidade.

Porém somos nós mesmos que criamos e alimentamos as criaturas que nos devorem. Os Champinhas, os Sandros, os linchadores e linchados, chacinadores e chacinados, todos são nossos “parentes próximos”. E poderíamos, facilmente, ser um deles. Ao mesmo tempo em que não temos culpa, somos todos responsáveis.

As cartas estão na mesa, os ingredientes estão misturados na panela fervente. A hora da refeição se aproxima: quem vai experimentar primeiro essa iguaria indigesta?

2 comentários:

Carolina Molina disse...

Post perfeito. E é óbvio que não vou discordar de nada já que passamos o final de semana quase inteiro conversando sobre esse assunto, que diga-se de passagem me tira o sono de verdade.

Seria mais fácil fingir que certas coisas não existem, dizer que melhor seria sair do país(ou do planeta), mas os fatos estão aí.

O Mano Brown teve em sua vida essa cultura inserida. Discordando ou não, quem é que vai poder dizer que passou o mesmo que ele e está agindo de forma diferente.

E nós que não pertencemos a classe nenhuma e à raça nenhuma, estamos aqui discutindo o que não pode ser ignorado, mas tb não pode ser consertado de uma hora pra outra, mas fazemos nossa parte plantando um "novo" pensamento.

Enfim, blá blá blá, o seu post foi perfeito, não tenho nada a acrescentar.

Anônimo disse...

Sempre que eu leio os posts do "A Voz do Morto" não dá gás de comentar - e eu já te disse isso - porque quase sempre desconheço o assunto, embora quase sempre extraia algo deles. Este, especificamente, mesmo sendo a mais dispersa/alienada possível é um post de identificação fácil. Talvez o único lido aqui que não traz nenhuma novidade realmente significativa e tampouco me comove. Que à certa altura o coração já funciona como um incinerador.
Ontem eu estava na Sé com uma amiga minha, pseudo-fotógrafa, que ilustrou o óbvio por meio de imagens enquanto a gente andava pelo centro. O lixo no luxo ou o luxo no lixo? Complexo, difícil, árduo. Ainda acho tanta razão, tanta beleza na deseducação (que é o ponto onde tudo principia)...
Eu fiquei, de verdade, com aquelas viagens de Proudhon na cabeça, mas o que me dói mais é ainda o que mais me emociona.
E essa vaidadezinha ainda vale o sacrifício...
Amar e mudar, mas, putaquepareu, dá tanto trabalho..