quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Ensinou-me que a História não é tudo.

Cem anos, quanto tempo, hein Albert. Passou voando esse século. Parece que foi ontem que te li pela primeira vez. Conheci você, soube de sua existência, por causa dos Engenheiros do Hawaii, sabia? Numa manhã ginasiana de 1992 eu fui pro Centro comprar discos com a mesada em vez de estudar para a prova de inglês (na sétima série) e comprei A Revolta Dos Dândis, de 1987, cuja faixa-título falava sobre se sentir “um estrangeiro”. E o resto do disco ia no mesmo tom desesperançoso existencialista. Até seu melhor inimigo Sartre era citado nominalmente na última canção. Mas só fui ler um livro seu, de fato, no primeiro ano da faculdade (1999), quando peguei O Estrangeiro na biblioteca. Além de finalmente descobrir que minha música preferida do The Cure, Killing An Arab, falava sobre o episódio central de sua obra-prima, fui tomado pelo Absurdo já no primeiro parágrafo, o melhor da literatura mundial (empatado com o começo d’A Metamorfose, de Kafka). Sabia que Gabriel García Márquez confessou que tentou imitar esse início impactante em todos os seus romances? Chacoalhado pela história de Mersault (que descobri se chamar Patrice quando li A Morte Feliz), em seguida li A Peste (que, confesso, achei um pouco cansativo) e todos os outros: O Exílio E O Reino, O Avesso E O Direito (de onde Sartre tirou o título ‘Com A Morte Na Alma’), A Inteligência E O Cadafalso, Núpcias, O Verão, até o incompleto O Primeiro Homem... vi suas peças, e nem de teatro eu gosto. Com O Mito De Sísifo eu vi que podia (fingir) ser e me sentir tanto Mersault quanto o herói grego, e depois também me vi no protagonista d’A Queda, aquele livro que descasca o ser humano feito uma banana, com todas as hipocrisias e vicissitudes a que ele tem direito, e que você escreveu após ser defenestrado da intelectualidade política francesa por causa d’O Homem Revoltado. Sua liberdade de pensamento sempre custou muito caro, né. Desagradou esquerda e direita, e por ambos já foi usado indevidamente. Naquela ocasião, Sartre (é verdade que ele era apaixonado por você?) foi bem escroto com você, né. Inclusive ficou tão doído por você ter ganhado o Nobel de Literatura antes dele, que recusou o prêmio quando foi laureado. Enfim, vamos lembrar o que temos em comum: o futebol, a saúde frágil, a má impressão de São Paulo, o tédio com o folclore, o desgosto com o Cristo Redentor (“lamentável”). Vejo-me até na sua falta de jeito em descrever minimamente cenas de sexo. Bom, por hoje a subida terminou. Amanhã, pedra entre pedra, retornaremos todos a esses mundos imóveis de verdade nenhuma. Aquele abraço e feliz aniversário, meu caro Albert. Que venham outros centenários enquanto o Tempo não resolve descansar.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

D'ya like dags?

Eis que tivemos O Grande Resgate Dos Beagles de 2013. E o modo como A Esquerda De Internet se manifestou quanto a isso foi deprimente, pra dizer o mínimo. Gente que se arvora esclarecida se derramando em preconceito, galhofa infantil e ingenuidade quanto aos rumos da ciência.

Veja bem, nada contra tirar sarro (eu mesmo fiz várias piadas), mas a coisa estava no nível de “é a favor dos animais e come churrasco”, ou de argumentos-emo como “se sua mãe estiver morrendo de câncer você vai querer dar remédio pra ela”, naquele clima de “é tão óbvio que sei tudo sobre o assunto e vocês, burros, estão errados, que vou inviabilizar o debate com minha opinião engraçadona”.

Você pode achar que o método usado foi errado; que não precisavam destruir o laboratório; que esses cachorros à solta, sabe-se lá com que coisas testadas no corpo, sejam perigosos pra saúde de alguém;

Bioética não é um assunto nada simples, e o uso de cobaias (humanas e animais) é discutido desde sempre. Não é ponto pacífico, como a maioria acha. Discute-se tanto pela questão da vida dos bichos (se temos ou não direito de dispor delas para isso) quanto pela própria utilidade de tais testes (ratos obesos, sedentários e pré-diabéticos, com genes selecionados, não seriam ideais para simular o uso nos humanos em geral).

Além disso, há questões como a minimização do sofrimento das cobaias, que espécies de animais usar, se o uso pela indústria farmacêutica é mais nobre que o uso por empresas de cosméticos, etc. Não é assunto que se esgota em um tuite engraçadão.

E os mesmos que gostam de black blocs quebrando bancos e viaturas acham um absurdo que o laboratório tenha sido danificado. Vem daquela ideia ingênua de que todos os cientistas são abnegados que passam o dia pesquisando a cura do câncer e da aids. Justamente numa época em que tanto se questiona o excesso de remédio que tomamos, das doenças que são inventadas na mídia para que sejam vendidas drogas para elas.

E da ideia igualmente tola de que ciência mais ‘hard’ não deva ser questionada por não-cientistas – basta um órgão oficial se manifestar corporativistamente que o assunto deve ser encerrado. É a noção torta de que a medicina/farmacêutica é uma maçonaria que decide hermeticamente os destinos de nós, consumidores. Sim, porque é isso que somos pra essa indústria (pra qualquer indústria, aliás): consumidores. Ou pior, de que ‘Ciência’ é uma entidade homogênea que visa desinteressadamente ao bem-estar da humanidade.

Por isso tudo, ninguém de fora pode se manifestar (nem pacifica, nem mais ‘energicamente’). Devemos esperar pacientemente que as empresas e os laboratórios substituam as cobaias animais por alternativas que já existem, porém são bem mais caras (pra não falar da comodidade de manter os mesmos procedimentos de sempre), ou mesmo procurar alternativas que ainda não existam.

Se hoje usamos animais em vez de pessoas (e olha que estas ainda eram usadas primariamente até bem pouco tempo) é porque houve protestos, é porque houve pressão, é porque alguma parcela da sociedade de mobilizou. E não foi de uma hora pra outra. Ninguém sequer esperou que algum mínimo tempo passasse para que a ação fosse vorazmente condenada: o Tribunal Da Internet não perde tempo. Imediatamente aquelas pesquisas tinham valor inestimável (aliás, até agora não sei o que pesquisavam lá), as investigações que corriam preguiçosamente havia mais de ano foram atrapalhadas, e as articulações dos sempre bem-intencionados cientistas para que haja outros métodos de testar produtos sofrerão retrocesso por causa disso.

Independentemente de a ação ter sido certa ou errada, feita do melhor ou do pior jeito, é ótimo para que esse debate seja posto na mesa às claras. Porque pra grandíssima parte da Esquerda Da Internet, o ativismo pelos direitos dos animais é uma luta menor, vindo atrás até mesmo da legalização da maconha ou do policiamento nas faculdades públicas (pra ficar em dois temas interessantes a grupos bem restritos). A esquerda adora adotar o pacote comportamental do manifestante, que inclui todos apoiarem sempre as mesmas causas, mas os animais ficam de fora dessa.

Sim, porque somos nós aqui na internet que decidimos qual luta é valida e qual não é. Normalmente o meu é ativismo, o deles é vandalismo. As mesmas pessoas que disseram que só a comunidade científica pode opinar sobre isso fazem chacota e dizem bobagens sobre o ativismo pelos animais, que eles desconhecem.

Se hoje não se pode prescindir desses testes, até porque é o protocolo mundial para a liberação desses medicamentos no mercado, é justamente a pressão dos ativistas e da sociedade que pode mudar isso. Não pense que as empresas vão adotar métodos mais dispendiosos (que não usem animais) por vontade própria.

E ainda que coelhos também tenham sido salvos, e parece que tentaram levar ratos, mas a polícia teria chegado e impedido, é meio óbvio que o ser humano tem mais empatia com cachorro, gato e outros animais que cultuamos há mais de mil anos, que interagem cotidianamente conosco, do que com insetos e roedores, por exemplo. Isso é algo tão óbvio que as pessoas deviam ter vergonha de questionar como se fosse um grande ‘apanhei-te cavaquinho’.

Ah, e em resposta ao senso comum de que estamos 100% seguros com esses testes em animais (e até com os testes posteriores em humanos), a talidomida (só pra ficar num exemplo) manda lembranças.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

The loneliness of the long-distance runner

Hoje é o aniversário de 70 anos de Werner Herzog Stipetić (ele aparentemente não curte este sobrenome). E aproveito esta data comemorativa para explicar o porquê do meu novo blog Maratona Werner Herzog.

Normalmente digo que meu diretor favorito é Martin Charles Scorsese (este já não curte o segundo nome), até por que ele fez meu filme preferido de todos os tempos (e que pra mim é a maior obra cinematográfica da História), Taxi Driver.

Porém, ele assumidamente faz filmes mais comerciais e/ou por encomenda sempre que precisa de dinheiro para financiar projetos pessoais – Marty vai sempre pagando um filme com outro –, de modo que tem filmes que saem menos pessoais que outros. Talvez um dia eu faça uma ‘Maratona Scorsese’, quem sabe, mas não por ora.

Herzog é uma boa pedida, primeiramente, porque, mesmo mantendo uma assinatura pessoal muito forte (até porque ele sempre escreve, dirige e produz tudo), são sempre experiências díspares: já filmou nos cinco continentes (único diretor a fazer isso) com anões, surdo-cegos, aborígenes, atores hipnotizados, atores amadores, atores com deficiência mental; já filmou febrilmente no deserto, já fez filme com câmera roubada, já quase abateu a tiros seu ator principal, já destruiu parte da Amazônia (onde também já filmou sob a mira de índios hostis) para atravessar um outeiro com um barco a vapor, já comeu o próprio sapato... enfim, tem diversão & depressão para todos os gostos. Ver e rever seus filmes é sempre uma experiência impactante.

Além disso, pouquíssima coisa de Herzog está disponível no Brasil: de 55 filmes, apenas seis estão disponíveis em DVD [dois deles porque têm atores hollywoodianos como Christian Bale e (eca!) Nicholas Cage)], e menos de 10 até hoje foram lançados em VHS ou em, circuito comercial de cinema. O que resta, além de eventuais retrospectivas em centros culturais e cineclubes, é a exibição, com atraso de dois a três anos, em mostras de cinema, de filmes que já tenham rodado o mundo e ganhado um monte de prêmios (foi assim com Grizzly Man, The Wild Blue Yonder, Encounters At The End Of The World e Cave Of Forgotten Dreams.

Então, além de a maratona ganhar contornos de garimpagem épica por torrents, blogs de download e sites com streaming (incluindo ver filmes só com áudio em inglês, com legendas em espanhol, etc.), tenho a intenção de servir de mais uma referência para fãs de Werner Herzog, já que tanto em português quanto em inglês há pouquíssima coisa sobre ele na internet, e a literatura impressa também não impressiona: no Brasil, apenas os autobiográficos Caminhando No Gelo e A Conquista Do Inútil (este ainda não li); Werner Herzog: O Cinema Como Realidade, de Lúcia Nagib, está esgotado há anos. Em português de Lisboa, temos o ótimo Caminhando No Gelo, da italiana Grazia Paganelli, mas é importado, sai quase uma centena de reais. E quem lê em inglês pode importar (ou procurar PDF, tem por aí) de Herzog On Herzog, de Paul Cronin.

Diretores mais pop têm muito mais material disponível na internet, mas a literatura impressa sobre cinema é um problema seriíssimo no Brasil, tanto quanto muitos clássicos não terem versão em DVD até hoje, ou estarem fora de catálogo (como Serpico, de Sidney Lumet, por exemplo). Essa ausência de cultura cinematográfica é sem dúvida algo que faz do Brasil, como costumo dizer (mais ou menos) hiperbolicamente, produtor do pior cinema do mundo (pior das Américas, com certeza) - mas isso é assunto pra outra postagem.

A ideia é fazer um meio-termo entre meras impressões pessoais e maiores contextualizações; não sou especialista em coisa alguma, mas também não quero fazer tão-somente crítica de Facebook. Quando possível, vou buscar referências no pouco de bibliografia que tenho. Sem pressa (afinal são mais de cinquenta filmes, nem sei se conseguirei encontrar todos, e ele costuma lançar mais de um filme por ano), porém mantendo um ritmo legal de atualizações.

Enfim, tanto eu quanto quem vai me acompanhar tentando ver os filmes, vai sair da maratona uma pessoa diferente; sei lá se melhor ou pior, mas ninguém sai ileso do obsessivo e insano universo de Werner Herzog.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

Ainda não inventaram dinheiro que eu não pudesse ganhar

Hoje faz uma semana, uma eternidade nestes tempos, que o Fora do Eixo (FdE), a tiracolo da Mídia Ninja, foi apresentada ao grande público (ou pelo menos um público além do underground musical), e desde então muito tem se falado, por parte dos críticos, e pouco efetivamente respondido, por parte dos acusados.

Temos impressionantes relatos de assédio moral, como este da ex-FdE Laís Bellini, de calote, da cineasta Beatriz Signer, além de pessoas ligadas à cena musical como o Márvio dos Anjos e o André Barcinski. Temos até trabalhos acadêmicos confirmando muitas das práticas denunciadas pelos “desertores” do esquema. Sem falar no #FdELeaks, espaço para denúncias anônimas (porém todas com provas documentais) e muitos outros questionamentos ao falso-novo que o FdE representa.
 
Mas além de todos esses problemas (sendo o mais grave a falta de transparência com verbas públicas), vou abordar uma questão que ninguém tratou até agora: o impacto disso tudo na cena underground, para as bandas que não participam do FdE.

Até agora essa parte do assunto sempre ficou nas bandas que se sujeitam a não ganhar nada, a ter prejuízo (porque não é só tocar de graça, é arcar com viagem hospedagem e alimentação, pois quando há ajuda de custo, ela é insuficiente – tem mais detalhes sobre isso no post do Márvio).

No Roda Viva, Capilé disse que, graças a esse esquema de “toca de graça no festival faz contatos e depois volta à região fazendo shows pagos” há 30 mil bandas vivendo de suas músicas no Brasil.

Primeiro: não deve haver NO MUNDO 30 mil bandas autorais de rock que vivam exclusivamente de tocar. No Brasil, creio que nem 30. Dizem que o FdE sempre infla os números já megalômanos, mas vamos admitir que essa quantidade de bandas seja a que circula nos festivais (até porque como eles saberiam quais bandas conseguiram se dar bem depois e quais não?).

Então temos 30 mil bandas circulando pelo país, despejadas no underground, um mercado musical muito árido e competitivo, com a mentalidade de que banda desconhecida tem que tocar de graça mesmo.

Isso traz o mesmo efeito do que o excesso de faculdades e de “sobrinhos” no mercado de trabalho: os salários (cachês, no caso) despencam, pois sempre haverá quem aceite tocar de graça, em condições precárias, e ainda ajudando a divulgar e gastando em cerveja no local do show.

Sem falar que, pra isso, as bandas nem precisam do FdE: se você ligar pra qualquer balada/bar/casa de shows de outro estado, se oferecendo pra tocar de graça, em qualquer dia e horário, se comprometendo ainda a ajudar na organização, no som e ainda a consumir no próprio local, você vai conseguir shows, mesmo que sua banda seja ruim. Não precisa viajar por conta própria pra outros estados pra tocar 20min nos festivais balaio-de-gato do FdE (como se fosse fácil se destacar tocando tão pouco no meio de outras dezenas de bandas). Esse esquema, aliás, é tão bom que o próprio Capilé não consegue mencionar cinco bandas que estiveram nesse esquema e hoje fazem sucesso (quando perguntado sobre isso no Roda Viva, falou sobre as tais "30 mil bandas").

Quem tem/teve banda nos últimos cinco anos já sabia de tudo isso. Agora esperamos que esse destaque maior pras histórias deem resultado e o FdE torne-se menos nocivo à nossa já tão combalida cena.


[PS: Se uma entidade, com mais de 50 CNPJs e uma equipe de oompa-loompas dedicados a cavoucar, de graça, 24h por dia, todos os editais possíveis, e apresentando as credenciais de uma estrutura também mantida sem remuneração de profissionais, como uma banda, um produtor de eventos ou mesmo outra cooperativa, em que os membros precisem trabalhar fora, pode competir? Quem já participou de um edital (do MinC ou das Secretarias de Cultura) sabe da imensa burocracia e das exigências aleatórias que tomam muito tempo e deixam qualquer um maluco. Se essa prática do FdE não é ilegal, ao menos o governo devia tomar medidas para que não haja essa monopolização dos recursos.]

segunda-feira, 17 de junho de 2013

E a determinação de manter tudo em seu lugar




If you believe that you know in this time
You've got anything to win
If you believe that you know
Then I say ‘You'll lose all again.’"

(…)

We are credulous idiots
And won't understand what they plan
We march with the times
It's what they expect and we do.

(Helloween, We Got The Right)

Primeiramente sou contra a origem do protesto: essa história de passe livre é uma demagogia tola, o movimento todo foi oportunista (Haddad ficou falando desde a campanha sobre a história do aumento, sobre ele ser necessário e que ele faria de tudo para que fosse abaixo da inflação) e ninguém fez protesto antes de a tarifa subir, tampouco quiseram negociar com o prefeito ou ao menos propor algo razoável. Sem falar que Alckmin, com seus trens sucateados e metrôs construídos a passo de tartaruga manca, foi basicamente poupado pelas manifestações até que sua PM baixasse o sarrafo na galera. Além disso, não acho que nosso problema seja o preço da passagem: desde que a Marta passou pela Prefeitura (2001–2004), e infelizmente nada significativo tenha sido feito nesse sentido após sua saída, os ônibus são quase todos novos, temos mais terminais, corredores de ônibus e bilhete-único, além de haver bastante condução na maioria das linhas, que já justificariam o preço só pelas distâncias percorridas. Nosso problema é a (falta de) mobilidade urbana: não adianta colocar mais ônibus, pois só vai ter mais coletivos parados no trânsito. O transporte público é sofrido principalmente porque ficamos tempo demais dentro dele, tanto pelo engarrafamento pelo fato de trabalharmos longe demais de casa. É algo que sequer tem solução (apenas paliativos, como os corredores de ônibus) até no mínimo o tal Arco do Futuro do Haddad ser realizado.

Só que o que houve quinta-feira transcendeu os próprios motivos do protesto. Não faz mais diferença quem tá organizando. Se vai ter Psol, PSTU, PCO, anarcopunk, zé-coxinha achando que a culpa é do Dirceu, não estou nem aí. Hoje não importa o motivo, e sim que todos estejam na rua, ocupando o lugar onde vivem.

O tal do Passe Livre, pra mim, virou São Paulo Livre. A frouxidão da coisa, mais a repressão desumana da PM, se por um lado favorecem oportunistas de Direita que pretendem se apropriar da massa descontente, serviram ao menos para que a cidade de unisse em um novo objetivo: protestar pelo direito de protestar, pela ojeriza à autoridade militar que oprime quem deveria deixar seguro.

O que todo mundo viu quinta-feira, no lombo da classe média, foi só um trial version do que o preto pobre da periferia sofre cotidianamente. O tempo todo São Paulo cola um imenso NÃO em nossa testa. São Paulo é a cidade do NÃO. E todo mundo parece cansado disso. A cidade não é de Geraldo & seus PMs.

São Paulo é nossa e precisamos tomá-la de volta urgentemente.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Estar sendo. Ter sido.

A nostalgia da modernidade chegou definitivamente ao futebol.

Faz parte do Ser revisitar momentos do passado, às vezes aleatórios e quase sempre desimportantes em suas épocas, em narrativas heroicas e cheias de nostalgia. O passado é sempre idealizado, somos incorrigivelmente complacentes como nossos erros e as vicissitudes do que se foi. Até dos relacionamentos fracassados carregamos ao presente muito mais as coisas boas que as ruins.

Nossa infância era melhor porque brincávamos de chinelo de dedo na rua em vez de ficarmos na internet. Os namoros eram melhores porque eram mais inocentes. As propagandas tinham aquele romantismo meio tosco (aquela tosqueira meio romântica). Ninguém percebe que qualquer memória dessas é boa não em-si, mas por remeter à infância. Passar três dias pra conseguir baixar uma mp3 era uma droga, você se lembra disso com carinho tanto porque provavelmente era jovem à época, por ter sido um período de descoberta da informática para maioria das pessoas no país.

Cada edição do Oscar sempre parece pior e com mais injustiças na premiação – até porque é difícil um filme ser considerado clássico sem o teste do tempo –, no YouTube, qualquer música do meio dos 1990s pra cá é automaticamente “melhor do que essas porcarias de Restart e funk” mesmo que o vídeo em questão seja do Tonho Matéria ou de Luan & Vanessa, e bandas que eram terceira divisão em suas épocas, como Soul Asylum e, sei lá, Lagoa 66, ganham status de cult.

Gente que sequer procura saber de história da literatura desde que saiu do Ensino Médio (Colegial, em nosso tempo) reclama de que “não tem nenhum escritor novo que presta”.

Já no futebol, de uns dois anos para cá – não por acaso quando o Corinthians passou de primo pobre para primo rico do futebol brasileiro – criou-se um “inconsistente coletivo”, alimentado pela modernização dos estádios (agora “arenas”) e a chegada da Copa, de que o futebol brasileiro era bom mesmo até 1995.

Isso significa que as pessoas têm saudade de estádios caindo aos pedaços, filas enormes para comprar ingresso, craques indo embora às dezenas, viradas de mesa, regulamentos esdrúxulos (por vezes incompreensíveis), pouquíssimas transmissões pela TV e, sobretudo violência, muita violência, dentro do estádio e nos seus arredores, sem falar em como as mulheres eram hostilizadas na arquibancada.

Na memória delas estão apenas os primeiros títulos de seu clube, ou a época de fila que confirmou sua paixão, o tempo em que seu pai o levava ao estádio e pagava um sanduíche de pernil no final.

Claro que havia coisas melhores na época: bandeiras liberadas, ingressos e demais produtos do time (se bem que só havia o fardamento mesmo à venda) mais baratos, estaduais fortalecidos, seleção (com muitos jogadores atuando aqui) mobilizando as pessoas... mas toda época é assim, tem coisas piores e melhores.

O resto é o glacê de sentimentalismo que colocamos no que já foi para que possamos revisitá-lo com bom gosto naqueles momentos em que tudo parece ruim e envelhecido, e dá saudade de quando as coisas eram mais novas e coloridas.
                                                            

                                                                    * * *

[Sartre, n’A Náusea (1938), coloca nas palavras do protagonista Antoine Roquentin uma genial reflexão sobre a passagem do tempo que explica isso obviamente muito melhor do que eu.]

“Eis o que pensei: para que o mais banal dos acontecimentos se torne uma aventura, é preciso e basta que nos ponhamos a narrá-lo. É isso que ilude as pessoas: um homem é sempre um narrador de histórias, vive rodeado por suas histórias e pelas histórias dos outros, vê tudo o que lhe acontece através delas; e procura viver a sua vida como se a narrasse.

Quando se vive, nada acontece. Os cenários mudam, as pessoas entram e saem, eis tudo. Nunca há começos. Os dias se sucedem aos dias, sem rima nem razão: é uma soma monótona e interminável. De vez em quando se procede a um total parcial, dizendo: faz três anos que viajo, três anos que estou em Bouville. Também não há fim, nunca deixamos uma mulher, um amigo, uma cidade de uma só vez. E também tudo se parece: Xangai, Moscou, Argel, ao fim de 15 dias é tudo igual. Por alguns momentos – raramente – avaliamos a situação, percebemos que nos envolvemos com uma mulher, que nos metemos numa confusão. Por um átimo.

Depois disso o desfile recomeça, voltamos a fazer as contas das horas e dos dias. Segunda, terça, quarta. Abril, maio, junho. 1924, 1925, 1926.

Viver é isso. Mas quando se narra a vida, tudo muda; simplesmente é uma mudança que ninguém nota: a prova é que se fala de histórias verdadeiras. Como se fosse possível haver histórias verdadeiras; os acontecimentos ocorrem em um sentido e nós os narramos em sentido inverso. Parecemos começar do início: ‘Era uma bela noite de outono em 1922. Eu era escrevente de tabelião em Marommes.’ E na verdade foi pelo fim que começamos. Ele está ali, invisível e presente, é ele que confere a essas poucas palavras a pompa e o valor de um começo.

‘Estava passeando, saíra do vilarejo sem perceber, pensava em meus problemas de dinheiro.’ Essas frases, tomadas pelo que simplesmente são, significam que o sujeito estava absorto, deprimido, a cem léguas de uma aventura, exatamente nesse tipo de estado de espírito em que se deixam passar os acontecimentos sem vê-los. Mas o fim, que transforma tudo, já está presente. Para nós o sujeito já é o herói da história. Sua depressão, seus problemas de dinheiro são bem mais preciosos do que os nossos: doura-os a luz das paixões futuras.

E o relato prossegue às avessas: os instantes deixaram de se empilhar uns sobre os outros ao acaso, foram abocanhados pelo fim da história que os atrai, e cada um deles atrai por sua vez o instante que o precede: ‘Era noite, a rua estava deserta.’ As frases são lançadas negligentemente, parecem supérfluas; mas não caímos no logro e a deixamos de lado: é uma informação cujo valor compreenderemos depois. E temos a impressão de que o herói viveu todos os detalhes dessa noite como anunciações, como promessas, ou até mesmo de que vivia somente aqueles que eram promessas, cego e surdo para tudo que não anunciava a aventura. Esquecemos que o futuro ainda não estava ali; o sujeito passeava numa noite sem presságios, que lhe proporcionava de cambulhada suas riquezas monótonas, e ele não escolhia.

Quis que os momentos de minha vida tivessem uma sequência e uma ordem como os de uma vida que recordamos. O mesmo, ou quase, que tentar capturar o tempo.”

sexta-feira, 1 de março de 2013

E o principal fica fora do resumo.

Tudo errado na Bridgestone Libertadores (adoro esses nomes constrangedores de torneios com patrocínio): estádio acanhado, daqueles que seriam recusados no Paulistão Chevrolet, sem segurança nenhuma. Os clubes precisam, além de jogar na altitude, encarar viagens ridículas a cidades sem estrutura – no caso, avião até La Paz, depois avião até Cochabamba e então avião até Oruro.

Semana que vem o Corinthians fará a maior viagem da história da Libertadores, até Tijuana, divisa com os EUA, pra jogar contra um time que sequer pode ir ao Mundial caso vença o torneio, o que deve fazer com que jogue eventualmente com times mistos, como de praxe com os times mais preocupados com o Mexicanão.

Cássio foi atingido por pilhas e bolinhas de gude, tudo dentro da normalidade. Havia fogos de artifícios de todas as modalidades na torcida do San José, incluindo um mosaico em chamas no alambrado, que parecia uma grade de separar galinheiro. Ninguém era revistado na entrada, credenciais de jornalistas sequer eram conferidas.

Apesar de tudo, o clima era pacífico entre as torcidas, tanto que sequer havia divisão entre elas. Aí um imbecil desavisado – e tanto faz se ele é o menor daqui os um dos que estão presos lá – acidentalmente dispara, quase perpendicularmente ao solo, quase atingindo os próprios companheiros, um sinalizador marítimo que muito provavelmente sequer sabia usar, tendo comprado pensando que era daqueles sinalizadores que queimam na mão em vez de disparar. Malfadadamente o míssil percorre o estádio e atinge o pequeno Kevin bem no olho, atravessando seu crânio. Morte imediata.

Aí começa a merda: a torcida, revoltada, começa a atirar tudo que tinha em mãos contra os jogadores do Corinthians que se aqueciam, enquanto gritava “asesinos”. Revolta até compreensível, porém isso devia ser punido, não? Se o infeliz que atirou o sinalizados e a torcida corinthiana não podem ser responsabilizada por dolo (embora a “justiça” boliviana queira arrancar o couro dos torcedores presos a fim de dar satisfação à sociedade deles e tirar o foco das próprias responsabilidades).

Tudo isso ocorreu durante o primeiro tempo. No intervalo, todos, incluindo quem acompanhava a transmissão pela TV, já sabia que havia um cadáver no estádio. E o que fez a Conmebol, tão ciosa & respeitosa? Deixou a partida correr.

A mesma entidade finge mostrar serviço, que finge mostrar respeito, punindo o Corinthians e sua torcida sem julgamento, sem defesa, sem investigação (afinal, tudo isso dá trabalho, né, e teriam que admitir as próprias responsabilidades no caso), ordena que o Alvinegro jogue durante seis meses (!) sem torcida em jogos sul-americanos.

Só me digam o que o Corinthians podia ter feito para impedir a tragédia, aí eu me convenço de que a punição vai servir de alguma coisa para além de uma fútil demonstração demagógica de força da confederação, satisfação aos idiotas da sociedade do continente e lavagem das próprias mãos sujas há uns cinquenta anos.

“Ah, o Corinthians financiou a torcida que foi até lá”. Olha, ainda que isso seja verdade, e provavelmente é (isso é um mal inerente ao futebol mundial), não é ilegal, e pior!, essa questão de violência das torcidas, etc., é totalmente descabida no momento. Quem me conhece sabe que desprezo torcidas organizadas, todas elas, só que isso tá bem longe do foco da questão.

Não foi um caso de violência dos corinthianos que foram até lá, não houve confronto com os locais, nem briga, nem nada. Foi um acidente! Só isso. Um terrível acidente. Perde-se um tempo imenso discutindo algo que nada tem a ver com o assunto. Foi um ato individual e inadvertido, que se puna o responsável por homicídio culposo e fim de papo.

Já que a partida seguiu seu curso, horrivelmente, que ao menos a rodada seguinte fosse cancelada, mas nem isso. Vamos punir o Corinthians. Ao San José, que foi negligente com a segurança, nada. Polícia boliviana, que não revistou ninguém, e Conmebol, que deixa a precariedade e a violência correrem solta em todos os seus campeonatos, nada também.

E aqui no Brasil, imprensa, torcedores rivais, até alguns corinthianos, e gente que nada tem a ver com futebol, mas adora posar de esclarecido nesses momentos, acha tudo lindo, tudo correto. O clube tem prejuízo, os torcedores têm prejuízo, e pronto, o justiçamento está feito.

Para blogueiros rivais, o Corinthians sequer tinha direito de contestar qualquer coisa, não devia haver defesa, era simplesmente aceitar qualquer punição. E vocês não viram ninguém defender punição para o San José, tampouco se manifestar quanto à briga generalizada entre as torcidas do Peñarol e do Vélez (cuja delegação foi recebida à pedradas no Estádio Centenário, como de praxe) esta semana.

O que se viu foi a falsa indignação de quem só quer mesmo subir na caixa de maçã – que, neste caso, é tristemente o cadáver do Kevin – e discursar com o peito estufado e ar superior e ver, de camarote (de caixote) o Corinthians se foder. O Alvinegro, mais uma vez, não tem direito de cobrar isonomia.

Na internet, seres coprófagos e abissais se deleitavam em textos inacreditáveis como este e este. De repente, a incompetente Conmebol tinha ferrenhos defensores propagando que aquelas medidas pastel-de-vento iam resolver os problemas da competição.

Na televisão, gente que provavelmente nunca sentou a bunda numa arquibancada, como Noriega e Caio Ribeiro, lamentavam “não poder levar os filhos ao estádio”. Amigos, desde o final da década retrasada, pelo menos, que é superseguro frequentá-los.

Demorou muito: o menino Rodrigo de Gasperi foi assassinado – aí sim, num ato horrível e deliberado da Torcida Independente, a pior entre os piores –, na final da Copinha de 1992, e eu estava lá, naquela tristíssima tarde na Rua Comendador Souza, e era um garoto feito ele, e podia ter morrido também, e só em meados de 1998 voltou a ser seguro frequentar estádios, após uma década de emboscadas, brigas generalizadas (como a final da Copinha de 1995, entre São Paulo e Palmeiras), tiroteios como os que cansei de ver (e fugir deles) nos arredores do Morumbi, e um ambiente absolutamente hostil, sobretudo para as mulheres.

Ainda que eu jamais tenha participado de qualquer confusão em 24 anos de estádio, naquela época sempre havia aquela sensação de ir sem saber se voltava, tanto que deixei de ir aos jogos entre 1993 e 1997.

Assim como a morte do Rodrigo, sozinha, não mudou nada, coisa alguma será modificada no espetáculo mambembe que são os torneios da Conmebol. Nada. O Tigre, aquele time que arranjou briga com os seguranças do São Paulo e abandonou a final da Copa Sul-Americana, está na Libertadores deste ano, como se nada tivesse acontecido. Tomou apenas uma multa (o SPFC, ao que parece, levou multa e perda de um mísero mando de campo, sendo que havia seguranças seus armados no local).

A coisa toda serviu apenas para jornalistas abjetos, palpiteiros de internet e, nos estertores, advogados e juízes babacas se acharem melhores quer os outros e proporcionar aquela coisa deprimente que foi aqueles quatro sujeitos no Pacaembu vazio.

E ontem, quinta-feira, ainda por cima, um imbecil do RS entrou com liminar suspendendo o pagamento da Caixa ao Corinthians. Mas esse negócio de “anti” nem existe, né, é coisa da gente, que se acha especial. Ah, mas claro que não tem nada de pessoal contra o Corinthians nisso. Fomos acusados que tudo quanto foi coisa nos últimos dias. Assassinos, cúmplices, insensíveis. Queriam que eu me sentisse culpado pela morte.

Aqui vou ceder ao tal do clubismo (claro que sou clubista, estamos falando do meu clube) e dizer: tentem ganhar do Alvinegro, atual campeão do continente e do mundo, no campo, porque fora dele está muito, muito feio isso que vocês estão fazendo.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

A Caverna Dos Sonhos Esquecidos


Documentário | 2010 | cor | 90 min |
País(es): França, Canadá, Estados Unidos, Reino Unido e Alemanha
Roteiro e direção: Werner Herzog
Produção: Erik Nelson
Site: www.caveofforgottendreams.co.uk


A maioria dos filmes de Werner Herzog, tanto os de ficção quantos os de não-ficção (embora na obra desse diretor alemão tais gêneros se misturem, como veremos a seguir), parte de pontos aparentemente isolados, estranhos, incomuns, ora até banais, e passam por caminhos tortuosos e intensos, de contemplação e desafio, até que profundas reflexões sobre a existência tomem conta do espectador (na prática é bem menos pedante do que essa minha descrição). Goste ou não de seus filmes, você jamais sai ileso, não permanece a mesma pessoa depois de vê-los.

Em A Caverna Dos Sonhos Esquecidos (Cave Of Forgotten Dreams), vencedor do National Society of Film Critics Awards de 2012 na categoria “Melhor Filme Não-Ficção”, Herzog nos leva para dentro da caverna Chauvet, no sul da França, maravilha intocada (descoberta apenas em 1994 e fechada à visitação pública), que contém as pinturas rupestres mais antigas da História (cerca de 30 mil anos).

Não foi um tema que me empolgou a princípio – parecia pouco para um filme de 1h30min, tinha cara de programa de TV com no máximo 1h. E filmes 3D normalmente são irritantes, é terrível como a tecnologia é a mesma usada desde os 1950s, com pouquíssimo avanço. Porém imaginei que Herzog, que não é exatamente um modista, teria feito o filme assim por julgá-lo necessário. E se em vez de coisas pulando na nossa cara, tivéssemos o efeito de aprofundamento, como em U2 3D (2008), por exemplo, seria interessante.

Mas já é tão difícil um filme do alemão aparecer por aqui (sempre vêm atrasados uns dois anos, e depois de terem sido premiados no mundo inteiro), que resolvi aproveitar as sessões que o Cinesesc fez no início desde mês (não consegui ver o filme em sua única exibição na Mostra de Cinema de 2011).

Do começo impactante, ao som de canto gregoriano, com um travelling da câmera sobre a paisagem, até chegar à entrada da caverna, onde encontramos a expedição, quando temos a ideia de um lugar isolado do tempo e do espaço, até o final enigmático com jacarés albinos (!), temos um longo e contemplativo (até demais) mergulho na história da humanidade, a nossa história.

Mostrando profundo respeito pela caverna e por seus desenhos, Herzog, em tom solene, tentando se equilibrar entre o didático/científico e o espiritual/filosófico conduz a narrativa de forma lenta, cheia de grandes silêncios, querendo que imaginemos os desenhos e seus criadores ali, em presença, em movimento, fazendo da caverna uma janela para um passado muito distante, que sequer conseguimos imaginar na prática.

Pensar em como eram, como viviam, o que pensavam aquelas pessoas que fizeram aqueles desenhos tão bonitos (e sofisticados!) há 30 mil anos, num lugar tão fascinante (ainda mais aos nossos olhos “civilizados”), em como permanência e impermanência se equilibram naqueles naquelas manifestações perenes de quem já virou pó milhares de anos antes que nossos olhos chegassem até ali.

Esse clima de ser, tempo, existência, eternidade, em ritmo lento (ora repetitivo na descrição e análise dos desenhos e das hipóteses sobre eles), torna o filme um tanto monótono, cansativo até. Talvez tudo pudesse ser resolvido com meia hora a menos de filme. Até porque a equipe é proibida de ultrapassar um caminho pré-definido por uma passarela de metal, a exploração não é livre, não há como se aproximar de fato dos desenhos. Muitos são vistos de longe ou apenas descritos em off, enquanto outros, mais ao alcance das lentes, são mostrados quase à exaustão.

Aspectos comuns à filmografia de Herzog, como a confusão entre ficção e realidade (seus documentários nunca são totalmente “reais” e suas ficções jamais abrem mão de cenas “de verdade”) aparecem especialmente na cena em que um dos arqueólogos revela ter sido acrobata de circo. Além de não ter a ver com o filme, mas ser interessante por si só, fica óbvio que o diretor já sabia daquilo e forjou ter descoberto por acaso numa conversa durante a gravação da cena. Faz parte da visão de Herzog de que o documentário é uma visão de mundo, cheia de intencionalidade, e não mero espectador dos acontecimentos.

A relação entre o homem e a natureza, tema comum à filmografia herzogiana, em filmes tão diversos como O Homem-Urso, Aguirre – A Cólera Dos Deuses, Fitzcarraldo e Fata Morgana, obviamente se apresenta em toda a narrativa, embora não de forma tão impactante e genial quanto nesses clássicos.

Enfim, é um filme para aficionados por Herzog, como eu, que lamentam as raríssimas oportunidades de vê-lo em tela grande no Brasil. De quebra, você volta para casa com uma grande reflexão sobre a finitude do ser e a possível perpetuação da arte, da linguagem e da vontade, plantada na cabeça por uns tempos.