sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

E o sorriso de uma alegria que eu não tive.


"Wherever I am | I'm always walking with you | I'm always walking with you | But I look and you're not there. || Whoever I'm with | I'm always talking to you | I'm always talking to you | And I'm sad that you can't hear | Sad that you can't hear." [Cat Stevens, How Can I Tell You]

Hoje faz dezesseis dias que você morreu. Dezessete da última vez que te encontrei com vida, ainda que já se esvaindo. Dezoito de nossa última breve e aflitiva conversa. Ainda acordo pensando que você está em casa, me assusto com o que seria sua respiração adoecida, penso em te telefonar. E no que você pensaria sobre tudo que faço, penso, sinto, sei, não sei, sou, não sou. Ainda sinto o cheiro do hospital e sei descrever exatamente o barulho que as pás de terra fizeram no teu caixão. Do desamparo de minha família, e da minha sensação de estar no meio de um imenso deserto, e que sempre estivesse lá. Eu e o deserto, só faltando que notássemos um ao outro. Da tua cor no necrotério, do semblante de todos que foram se despedir de você, do brilho alvinegro da tua derradeira veste. De frases, algumas ditas por mim, outras por você, as demais por outrem, como ‘Hoje eu não estou muito bem, não’; ‘Eu te amo. Não desiste, porra’; ‘Por que você fez isso com você?’; ‘E agora, o que vai ser de mim?’; ‘Fica com Deus. Fica com Deus. Fica com Deus’. Ainda falo o tempo todo com você, e às vezes acho que quase posso te ouvir. Suas histórias repetidas, exageradas; suas opiniões cheias de razão, respostas sempre blasé, manias e maneirismos. Mas não posso. Não ouço. Você não fala. Não poderei te ver, porque você já não é e não há. Porém, você ainda está, como esteve, e estará, não apenas na obviedade inevitável das memórias que sucederão o pesar, a dor, o vazio, mas em cada gesto meu. Em cada mínimo gesto. Do jeito de arrastar os chinelos ao modo de torcer em silêncio pelo Corinthians no estádio. Do azeite em tudo quanto é comida ao jeito pragmático de lidar com as coisas. Da intimidade com a natureza ao  cruzar de pernas e reclinar na cadeira ou no sofá. Da teimosia ao fatalismo. Comer pouco, não chorar, esconder a fraqueza com mais força. Sempre se transformar. Porque a vida, até a morte, é tudo reinvenção. E, de tanto ser assim, também repetição. Obrigado por tudo, até pelos erros. Sigo errando por aqui também. E que um dia nossos átomos se rearranjem, juntos, em formas tranquilas e perenes.

The silence of sound [III de III]


Encerrando o Listão do Vanzão 2019, a lista internacional, certamente a mais idiossincrática e difícil de fazer.

Батюшка, Панихида
Projeto polonês [ninguém faz música extrema mais doida que os polacos] que é basicamente uma missa ortodoxa tocada como black metal  - sim, e isso mesmo, o primeiro disco [Litourgiya, de 2015] é sensacional, e ao vivo é uma experiência extasiante, com todo o cerimonial no palco [velas, turíbulos] e as vestimentas sacerdotais. Porém, houve uma treta no projeto, e, assim como no Gorgoroth, enquanto a justiça não decide quem é o dono da marca, há duas bandas ativas com o mesmo nome; a diferença aqui é que esta usa o nome em cirílico e outra grafa a transliteração [Batushka]. Na prática, este Батюшка segue a linha evolutiva do debute, enquanto o outro parece alguém tentando imitar porcamente a estreia do grupo. Abra sua cabeça e mergulhe nisto aqui, é coisa finíssima.
Ouça: Песнь 1


Këkht Aräkh, Night And Love
A estreia desta one-man band ucraniana, aparentemente, não tem nada demais: a capa, os timbres, as levadas, tudo remete ao black metal norueguês noventista. E, de fato, não há nenhuma grande revolução aqui: levadas meio Darkthrone, tecladinhos meio Burzum, aquele vocal áspero, mais falado que cantado [entre o Nocturno Culto e o Satyr]. Mas, olha, deixei o disco rolar aqui na primeira vez, e tudo fluiu de forma excelente: intros, intermezzos e outros de violão [ótimo timbre, aliás] entram e saem de forma coesa; teclados não cedem à autoindulgência travestida de minimalismo; tem momento inesperados de declamações quase sussurradas, de intensa melancolia – e é legal que dá ao mesmo tempo um respiro e um reforço no vazio espiritual que o disco pretende passar. Um disco legal de ouvir, mostrando que não precisa nem negar o passado e nem se apegar demais a ele pra fazer uma obra de arte competente e bem feita.
Ouça: Elegy For The Memory Of Me



Oiseaux-Tempête, From Somewhere Invisible
O som é grandioso como uma trilha sonora. Solene feito uma sinfonia. Tem baixo, guitarra, bateria. Teclados discretíssimos. Orquestrações de sopro e cordas. E Vocais declamados. Ah, e tudo feito na base da improvisação. Fora esse descritivo, não faço ideia de como enquadrar esse ~coletivo~ francês, que me chamou a atenção há quase dois anos, quando ouvi a estreia, Ütopiya, de 2015. É post-rock/metal, progressivo, krautrock, free-jazz, free-rock, free-music?, não faço a menor ideia, e, de repente, nem eles. Mas ouça esse From Somewhere Invisible com atenção, pois a viagem e o assombro são garantidos.
Ouça: We, Who Are Strewn About In Fragments



Rivers Like Veins, Z Iskier Srebrnych Orszaków

Mais um grupo da Polônia, estreando com disco cheio, após um EP [2017] e um split com a banda Stworz; black metal com boa produção, som sujo mas tudo bem audível, e nada mal feito; aquela pegada polonesa única nas timbragem e levadas; uns tecladinhos Burzum [impressionante como é referência nisso], batera meio primitiva, mas sólida, vocal OKzão; cadenciado, nem muito lento, nem muito desesperado [quase não tem blastbeat], com uns ritmos mais roquinho; acaba ficando meio pop [pro quão pop esse tipo de desgraceira pode ser]; som de batera maneiríssimo e – o que mais me atraiu – riffs [coisa meio rara no estilo] matadores, sem guitarras fazendo trêmolo o tempo todo. Baita disco.
Ouça: Kształt Obcego Ducha 


White Ward, Love Exchange Failure

Em 30/07/17, escrevi no Twitter: “E este White Ward mano, um post-black metal impiedoso com SOLOS DE SAX MOENDO no meio. E fica foda!”. No final daquele ano, Futility Report entrou na lista de melhores discos internacionais: “Descobri por acaso este quinteto ucraniano de post-metal, e que belo acaso: black metal gélido, climas contemplativos de post-rock (com leves toques de eletrônica), algumas levadas de pós-punk e hardcore aqui e ali, e muitas viagens malucas de jazz se debatendo em seis longas faixas. Por mais caótico que pareça, o resultado é sempre muito coerente, ainda que inesperado. A música vai aonde você nunca espera, e, mesmo assim, quando ocorre a mudança, você pensa que só poderia ser daquele jeito mesmo. Imperdível”. Pois este Love Exchange Failure está mais coeso: se foram, por exemplo, os climas pós-punk e hardcore; mas, mesmo assim, surpreende, pois as partes brutais estão mais desgraçadas, e a as partes jazzy estão quase chill-out.
Ouça: Love Exchange Failure





That’s all, folks! Se ainda não viu, veja a lista nacional e a lista latina. E até daqui a pouco.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

The silence of sound [II de III]


Chegou a parte mais variada do Listão do Vanzão: a seleta latina tem ritmos e países bem diversos, e é a seção mais prazerosa de ser feita.



Electric Mistakes, Vicente

Conheci estes bogotanos [um duo] meio por acaso – uma vez que a Colômbia não é uma país com tradição em rock [conhecia apenas Nicolás Y Los Fumadores, Aguas Ardientes e Piel Camaleón] – e foi surpreendente descobrir este som melancólico, garageiro [destoando do pop meio electro de grande parte das bandas latinas atuais, especialmente da cena mexicana, a maior e mais influente dos últimos temos]. Juan Hernández [voz, guitarra] + Laura Perilla [bateria], que, ao vivo são um quarteto, com adição de baixo e outra guitarra, fazem um som obsessivo, quase uma opressão sonora: ritmos duros, pesados, secos, hipnóticos, climas de pós-punk, dor e melancolia [mesmo nas músicas sonoramente mais leves, o clima  permanece denso], e letras que falam sobre perturbações mentais sortidas. E com a capa latina mais bonita do ano.
Ouça: La Fe


Little Jesus, Disco De Oro
A estreia destes mexicanos, em 2013 [Azul], é dos meus discos preferidos: indie pop rock dançante malemolente, ao mesmo tempo emocionante e sem se levar a sério [tem horas que lembra o nosso Holger]. Esperei muito este terceiro disco, e logo veio o sorriso que poucas bandas me dão: Little Jesus tem sabor de sábado, duas da tarde, aquele solzão rachando, você com uma long neck de draft, sal + limão. Aí você até lembra dos problemas, sabe que alguns estão além de suas possibilidades de resolução, mas sabe que, no fim das contas, tudo vai dar certo e que você vai ficar bem, e com quem você ama por perto. Leve-os para sua playlist de férias. “Fuegos artificiales | En todas las ciudades | Y en mi estómago también, vem | Entendí las señales | Tú y yo somos iguales | No nos pueden detener | Ni entender.
Ouça: Los Años Maravillosos


Los Mesoneros, Pangea
Estes venezuelanos [radicados no México]  seguem voando. Em dois anos, dois discos de altíssimo nível. A expectativa por este lançamento estava lá em cima, e não decepcionou, pelo contrário, só confirmou a vitalidade da cena local. A faixa-título, com participação da colombiana Elsa Carvajal [Elsa Y Elmar], é a coisa mais bonita que ouvi neste ano. Melódica e harmonicamente, uma joia pop: simples, bem cuidada, toca fundo em letra & música. O disco em si segue uma linha mais ‘animada’, mas sempre bela e emotiva. Los Mesoneros faturam pelo segundo ano seguido o título de melhor álbum latino que ouvi. "Existen fuerzas | Que nos acercan | Que nos alejan | Y si se enfrentan | ¿Cuál queda?"
Ouça: Pangea



No Rules Clan, Pantone
Desde o debute, Rap Nativo [2012] eu não ouvia falar ou lembrava deste do trio colombiano. Direto de Medellín, Anyone/Cualkiera e Sison Beats, junto do DJ Kario One, fazem um som extremamente consistente neste disco, mesmo sendo bem jovens [média de 25 anos]: rap assumidamente noventista, no estilo relaxadão da saudosa Death Row [ex-gravadora de Dr. Dre], acrescido de jazz, pop, milongas, boleros e outros tantos ritmos, especialmente latinos. Tem o flow necessário pra manter a atenção, mas sem o excesso de discurso que torna muitos discos de rap cansativos de ouvir num fôlego só. Serve pra uma caminhada, serve pra relaxar. “Verdades son verdades por mucho que se escondan | Y como esto es rap yo no digo nada y dale play al disco.
Ouça: Give Me The Loop


V/A, Fuego: Canciones De Emergencia
Vários artistas chilenos lançaram, neste ano, canções sobre os protestos que chacoalham o país feito terremotos: Leo Saavedra, [ex-Primavera De Praga], Kuervos del Sur, Ases Falsos [que já figurou num Listão do Vanzão], Alex Anwandter, Ana Tijoux... mas a iniciativa de Yorka Pastenes [que apareceu por aqui ano passado, com o duo que tem com sua irmã Daniela], artista engajada full-time, é incrível: pediu a seus alunos de uma oficina de composição musical que trouxessem composições sob o tema ‘fogo’, dirigiu e produziu o resultado, lançado por um coletivo chileno, acrescido de uma canção da própria dupla Yorka. Um disco obviamente irregular, muitas vezes urgente demais, às raias da pressa [o que é perfeitamente compreensível], que por ora resvala na ingenuidade, porém, absolutamente necessário. Uma obra já destinada à História.
Ouça: Cae



Aqui tem a lista nacional e logo mais ter a terceira e última parte, com meus discos internacionais prediletos do ano.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

The silence of sound [I de III]




[Devido ao adoecimento e à consequente morte do meu pai [4/12], com todas as questões práticas, para além das metafísicas, que isso trouxe, traz e trará, neste ano o Listão do Vanzão será mais enxuto em comentários, e sem as menções honrosas, senão não ficaria pronto neste ano; vai ficar muita coisa boa de fora, mas paciência. Pelo menos os selecionados são, como de praxe, gabaritadíssimos.]


Pois vamos à seleta nacional de disco que mais curti escutar neste ano.


Ave Sangria, Vendavais
Em 18/04/2014 escrevi isto no Twitter, após um espetáculo no Sesc Belenzinho: “Esse show do Ave Sangria foi das coisas mais ricas musicalmente que já vi: hard rock, psicodelia, prog, samba, maracatu, latinidad à Santana...”. Pois a mistura continua neste disco novo, após hiato de incríveis 45 anos!, com essa mistura toda que já citei - só que mais coesa, com os elementos mais espalhados pelas faixas do que tudo de uma vez só -, soando tudo redondinho, como um Alceu Valença tendo os Novos Baianos, fase ‘Ferro Na Boneca’, como banda. Bem tocado, bem gravado, bem produzido, com belas e esclarecidas letras [ "Eu tenho medo | Por mim e por vocês | E pelo que vem depois do fim deste mês."]. Vai bem a qualquer hora, ouve que não tem erro.
Ouça: O Poeta






Beto Cupertino, A Gente Vai Encontrar Sossego

Segundo disco do maior artista que Goiânia nos deu desde Mirosmar, finalmente temos um trabalho do nível de sua eterna banda Violins. Para quem gosta do já clássico Direito De Ser Nada [2014], não tem erro aqui: aquela insustentável leveza no meio de tantas arestas, a busca por alguma paz no meio e tanto caos, a crescente maturidade e, tempos tão niilistas e desesperançosos. Beto aceita o fado e encara os fatos. Um álbum inspirador, mesmo em sua aparente incompletude filosófica do ser-aí-em-qualquer-lugar ["Fica a gratidão do meu pesar | E meu constrangimento por viver | Sem graça do Divino | Sem compromisso."]. E, por tudo isso, o disco nacional que mais curti ouvir em 2019.
Ouça: Baque Do Instinto




Continental Combo, Cósmica Conexão
Os sazonais paulistanos do CC estão de volta, com seu rock sessentista à Byrds [guitarra de 12 cordas é característica demais, não tem jeito]; eles sempre me atraíram, desde a estreia epônima lá em 2005. A boa notícia, além da volta, é que o  som ganhou bastante em psicodelia, ficando bem mais denso, e, melhor!, com uns toques meio Clube da Esquina, aquele proguinho nacional maroto 1970s. Tem faixas predominantemente acústicas, percussões insuspeitas, abrindo muito , leque, porém, sem descaracterizar o som já estabilizado. Discão pra dar uma viajada suave.
Ouça: Andaimes E Cavalos





Dresden, Azul

A capa nacional mais bonita do ano embala o post-rock bacana do Dresden, de Ribeirão Preto, que estreia com este belo EP. Se você curte post-rock nacional, como Kalouv, E A Terra Nunca Me Pareceu Tão Distante, ruído/mm, num tem erro: é aquele som tranquilo que gira concentricamente até o caos controlado – porém, com mais melodia do que caos, e mais para o formato ‘canção’ [o quão uma faixa instrumental possa estar nesse âmbito], do que longas viagens eletroeletrônicas – ou seja, bem mais pro Explosions In The Sky do que pro Mogwai, por exemplo. Ótimo para momentos contemplativos, de ser-em-si.
Ouça: L'appel Du Vide (Chamado Do Vazio)



Jair Naves, Rente
Nunca havia me interessado pelo trabalho desse rapaz porque não me aprouvia sua voz no Ludovic [embora o som e as letras fossem de qualidade], sua famosa? Ex-banda. Continuo achando seus vocais estranho, porém, com a sonoridade mais contida, do que o rock tenso e intenso de outrora, dá outra conotação a suas tonalidades. Combina, ou, ao menos, não incomoda. E que melodias e harmonias bacanas, parece, vá lá, o Violins do Tribunal Surdo tocando as músicas do Aurora Prisma, aquela tensão contida, “a ponto de explodir”, como o próprio Jair canta na primeira faixa. Baladas tortas, roquinhos tortos, tudo bem instigante, e visceral mesmo quando delicado: “Quão forte é o instinto que me faz sobreviver | Eu ainda existo, não me deixa esquecer!”. Surpreendeu-me. Discão!
Ouça: Alívio Cômico/Palanque




Nos próximos dias, vêm as partes II [latina] e III [internacional] da lista, fiquem ligadinhos.