“É normal que, num fim de semana, ao viajar, muita gente morra presa nas ferragens de um Fusca sem que ninguém socorra.” (Biquíni Cavadão)
Com a mobilidade das classes D e E para a classe C (assunto mencionado no último post), a estabilidade econômica, os planos de pagamento a-perder-de-vista e a possibilidade de usar o FGTS para financiamento de veículos (além de os espertinhos de classe média que compram mais carros só para driblar o rodízio), temos, como já afirmei aqui 700 novos carros nas ruas de São Pulo todos os dias. Isso tem o lado bom de a economia do setor crescer e, mais que isso, reduzir drasticamente o desemprego na região do ABC, onde estão concentradas as montadoras.
Porém a questão do trânsito não vem sendo considerada devidamente; é mais do que óbvio que São Paulo vai parar definitivamente em poucos anos, devido ao inchaço populacional (vindo, mais que do Nordeste, do norte de Minas Gerais, além dos vizinhos bolivianos, peruanos, paraguaios e demais hermanos semi-escravos) e à falta de estrutura de transporte público (salvo as melhorias feitas na gestão da Marta Suplicy); como por anos e anos as obras viárias para carros foram privilegiadas, nossa malha ferroviária é um lixo, a rodoviária insuficiente e a metroviária, ridícula de tão pequena e sobrecarregada. O que fazer?
Aliás, essa questão do trânsito, que envolve muito egoísmo das classes altas contra as mais baixas (seja na displicência com que o transporte público é tratado, seja na esperteza de comprar mais carros para driblar a lei e dar uma de esperto), evoca o problema da má educação crônica do brasileiro no trânsito: juntemos estradas ruins, bebedeiras, afobação, falta de espírito coletivo e, principalmente, imprudência (que vem da falta de modos), e temos tantos acidentes rodoviários a cada feriado. E as estatísticas mostram que, mais que o alcoolismo (teoria que surge naturalmente pela época de festejos), o problema é a imprudência mesmo. Questão essa que se estende para as vias urbanas, nos semáforos vermelhos ultrapassados, nas brigas de trânsito, nas filas-duplas em porta de escola, nos belicosos motoboys e nos cruzamentos fechados.
Caetano Veloso aborda essa questão, especialmente o ultrapassar de faróis vermelhos, em nada menos que quatro canções – Podres Poderes (1984), Vamo Comer (1987), Neide Candolina (1991) e Haiti (1993) – e já deu diversos depoimentos à imprensa, especialmente na década de 1990, provavelmente pelo mesmo motivo pelo qual Antonio Cícero, em seu livro O Mundo Desde O Fim (1995), mais precisamente no ensaio O Trânsito No Brasil, sugere que a impunidade no trânsito constitui um sintoma da incapacidade de autonomia da sociedade brasileira. Nada mais natural para um povo que precisa ser multado para não correr e, pior, para usar cinto de segurança.
Deixaremos de ser crianças brincando de carrinho de bate-bate antes que as predições de Laerte (numa Chiclete Com Banana da metade dos anos 1980), da revista Mad (do mesmo período, creio) e de Ignácio de Loyola Brandão (em Não Verás País Nenhum, de 1981), com o engarrafamento definitivo, com carros subindo as paredes como baratas, invadindo todos os espaços, e as pessoas tendo que viver dentro de seus automóveis (alguém aí pensou na Catifunda?) ou morreremos todos em acidentes cinematográficos à Crash – Estranhos Prazeres e À Prova De Morte?
“Vamos comemorar como idiotas, a cada fevereiro e feriado, todos os mortos nas estradas.” (Legião Urbana)
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