"Wherever I am | I'm always walking with you | I'm always walking with you | But I look and you're not there. || Whoever I'm with | I'm always talking to you | I'm always talking to you | And I'm sad that you can't hear | Sad that you can't hear." [Cat Stevens, How Can I Tell You]
Hoje faz dezesseis dias que você morreu. Dezessete da última vez que te encontrei com vida, ainda que já se esvaindo. Dezoito de nossa última breve e aflitiva conversa. Ainda acordo pensando que você está em casa, me assusto com o que seria sua respiração adoecida, penso em te telefonar. E no que você pensaria sobre tudo que faço, penso, sinto, sei, não sei, sou, não sou. Ainda sinto o cheiro do hospital e sei descrever exatamente o barulho que as pás de terra fizeram no teu caixão. Do desamparo de minha família, e da minha sensação de estar no meio de um imenso deserto, e que sempre estivesse lá. Eu e o deserto, só faltando que notássemos um ao outro. Da tua cor no necrotério, do semblante de todos que foram se despedir de você, do brilho alvinegro da tua derradeira veste. De frases, algumas ditas por mim, outras por você, as demais por outrem, como ‘Hoje eu não estou muito bem, não’; ‘Eu te amo. Não desiste, porra’; ‘Por que você fez isso com você?’; ‘E agora, o que vai ser de mim?’; ‘Fica com Deus. Fica com Deus. Fica com Deus’. Ainda falo o tempo todo com você, e às vezes acho que quase posso te ouvir. Suas histórias repetidas, exageradas; suas opiniões cheias de razão, respostas sempre blasé, manias e maneirismos. Mas não posso. Não ouço. Você não fala. Não poderei te ver, porque você já não é e não há. Porém, você ainda está, como esteve, e estará, não apenas na obviedade inevitável das memórias que sucederão o pesar, a dor, o vazio, mas em cada gesto meu. Em cada mínimo gesto. Do jeito de arrastar os chinelos ao modo de torcer em silêncio pelo Corinthians no estádio. Do azeite em tudo quanto é comida ao jeito pragmático de lidar com as coisas. Da intimidade com a natureza ao cruzar de pernas e reclinar na cadeira ou no sofá. Da teimosia ao fatalismo. Comer pouco, não chorar, esconder a fraqueza com mais força. Sempre se transformar. Porque a vida, até a morte, é tudo reinvenção. E, de tanto ser assim, também repetição. Obrigado por tudo, até pelos erros. Sigo errando por aqui também. E que um dia nossos átomos se rearranjem, juntos, em formas tranquilas e perenes.