quarta-feira, 3 de junho de 2009

Quem disse que caramujo não tem coração?

As aventuras do caramujinho jornalista (I)

Era uma vez um caramujinho que fazia frilas.

Um dia uma borboletinha, aconselhada por outra borboleta, ligou para o caramujo e lhe ofereceu um freelance que ela não conseguiria fazer a tempo.

_Olá caramujinho, tudo bem?

_Tudo bem, borboletinha, e você?

E, numa cordial conversa, os termos do trabalho ficaram acertados, com todos os contatos e todas as coordenadas.

Faltava falar com o cliente, o besouro rola-bosta.

_Olá rola-bosta, tudo bem?

_Tudo bem, caramujinho, e você?

O besouro explicou que era um trabalho insano, muita coisa em pouco tempo. “Pelo menos poderei cobrar bastante”, pensou o ressabiado caramujinho.

No dia seguinte o caramujinho, mesmo tendo acordado com uma forte dor de barriga, vômito e enxaqueca, decidiu cumprir seus compromissos. Deslizou até o médico, onde tinha consulta marcada havia tempos. Sendo um molusco pobre, com casca de segunda mão, que utiliza o SUS, ficou esperando um tempão, mesmo com hora marcada. De lá, escorregou até o terminal de ônibus, onde engoliu a segunda pior coxinha de sua vida (fez até uma nota mental de listar depois os piores rangos que já comera), e seguiu para o longínquo cliente.

E o caramujinho foi. E foi. E foi. O lugar parecia nunca chegar. Que jardim distante! De terminal em terminal, de ônibus em ônibus, o pequeno molusco morria de calor dentro de sua carapaça que ardia sob o sol daquela tarde abafada. Desceu já atrasado, às pressas, quando viu que o enésimo ônibus que pegara não chegaria onde deveria. E o caramujinho andou. Andou. Andou. Mal havia muco suficiente para se arrastar por aquele caminho imenso, desconhecido, cheio de perigos. Resolveu perguntar a todos que apareciam

_Olá centopéia, onde fica este endereço?

_Não sei, caramujinho. Por que não pergunta àqueles cupins?

_Olá cupins, onde fica este endereço?

_Não sabemos, caramujinho. Por que não pergunta àquele louva-a-deus?

_Olá louva-a-deus, onde fica este endereço?

_Não sei, caramujinho. Por que não pergunta àquela aranha?

O caramujinho se sentiu perdido num imenso formigueiro, sem saber aonde ir. Por sorte sua joaninha-madrinha lhe telefonou, procurou o endereço na internet e corrigiu a rota do pequeno caramujo, já tão cansado e apreensivo.

_Olá caramujinho, você já andou tanto, mas agora nem está tão longe. Continue à direita, naqueles arbustos.

_Obrigado fada-joaninha. Serei eternamente grato.

Mas o pior estava pior vir: quando chegou à esquina do jardim, viu um imenso vale que deveria atravessar. Era tão colossal, e o caramujinho já estava tão cansado e atrasado, que só conseguiu pensar no Ice Blue, dos Racionais MCs, falando, em A Vítima:

“MANO, FOI UM ARREGAÇO!...”

E o caramujinho desceu o vale infindável.

Desceu.

Desceu.

Desceu.

No ponto mais fundo, sentiu o ar faltando como se estivesse no fundo do oceano.

Subiu.

Subiu.

Subiu.

O vento quente lhe ardia nos pulmões, o suor deixava seu corpo ainda mais escorregadio dentro do casco. Achou que ia infartar, de tanto que o coração palpitava.

Chegou ao local, com saudade de um banho relaxante em seu cogumelo, na companhia de sua caramujinha.

Suou de derramar cascatas enquanto esperava o cliente, sob os olhares enviesados da secretária taturana.

Quando finalmente foi atendido, naquele ambiente impessoal de grande fábrica, e foi formalmente apresentado pelo rola-bosta ao décimo terceiro trabalho de Hércules, aquele que ele recusou porque não ia dar tempo.

_Quanto você cobra por isso?

_Dez flores murchas.

_Tudo isso? Só posso pagar três.

_Esse preço é ridículo.

_O outro caramujo fez por duas flores. E nem estavam murchas.

_É, e o trabalho ficou uma merda.

_Ah, faz um desconto, vai. Quatro flores, ta bom?

O caramujinho pensou em torturar aquele ganancioso rola-bosta e todos os seus familiares. Mas havia viajado tanto até ali, o dia havia sido tão cansativo, que acabou aceitando.

Na saída, tentando minimizar seu prejuízo pessoal, inquiriu o besouro pão-duro:

_Pô seu rola-bosta, você me ensinou o caminho errado, não é possível. Tive que deslizar tanto que até me faltou muco pra voltar agora. Atravessei um longo jardim, canteiros estranhos e um vale gigantesco... e ontem você disse que era pertinho!...

_Ah, você veio de ônibus? O caminho era pra vir de carro! De ônibus tem um ponto ali pertinho, na esquina.

¬¬

Sentindo-se um caramujo prostituído, passou num boteco para comprar uma cerveja e dar uma conferida no final da Champions League.

Achou um velho com uma camisa do Corinthians na esquina. Perguntou a ele se o ônibus desejado passava ali, para então emendar:

_Hoje tem Coringão, hein? Dois a zero no Vasquinho?

_Opa, hoje a gente ganha fácil.

Ele jamais havia puxado conversa com um estranho, em toda a sua lenta vida. Alguma coisa havia mudado naquela tarde baça, e era a expressão estóica de um caramujinho que acreditava mais em si.

E a noite chegou como um manto alvinegro, pousando suavemente sobre aquele coração exausto.

Um comentário:

SahKelly disse...

Belo texto, apesar de não ter um final muito feliz...

Abraços ao caramujinho! ;)