terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Qualquer eternidade já passou para nós.

“Quando se vive, nada acontece. Os cenários mudam, as pessoas entram e saem, eis tudo. Nunca há começos. Os dias se sucedem aos dias,, sem rima, sem solução: é uma soma monótona e interminável. (...) Viver é isso. Mas quando se narra a vida, tudo muda: simplesmente é uma mudança que ninguém nota: a prova é que se fala de histórias verdadeiras: os acontecimentos ocorrem num sentido e nós os narramos em sentido inverso. (...) Os instantes deixaram de se empilhar uns sobre os outros ao acaso, foram abocanhados pelo fim da história que os atrai, e cada um deles atrais por sua vez o instante que o precede. (...) E temos a impressão de que o herói viveu todos os detalhes dessa noite como anunciações, como promessas, ou até mesmo de que vivia somente aqueles que eram promessas, cego e surdo para tudo que não anunciava a aventura. Esquecemos que o futuro ainda não estava ali; o sujeito passava numa noite sem presságios, que lhe proporcionava de cambulhada suas riquezas monótonas, e ele não escolhia. Quis que os momentos de minha vida tivessem uma seqüência e uma ordem como os de uma vida que recordamos. O mesmo, ou quase, que tentar capturar o tempo.” (Jean-Paul Sartre, A Náusea)

Incontáveis pensamentos cruzam minha mente e se cruzam nos estímulos elétricos e nas sinapses neuroniais; porém jamais há simultaneidade – cada fagulha de pensamento carrega em si a singularidade infinitesimal, privilégio da área nobre da consciência, para então continuar o circuito (retornando ou não), dando lugar a outro pensar ou sentir. E tais idéias, quando surgem ou reaparecem, são sempre devido a estímulos externos – toda consciência é consciência de alguma coisa. Ainda que tudo seja tão rápido que possa parecer instantâneo – seu cérebro, por exemplo, já processou estas linhas meio segundo antes de você perceber que o está fazendo e apreendê-lo o sentido – o processo é consciente, ainda que, digamos, automático, habitual. É uma área periférica do cérebro que cuida disso; porém foi você que decidiu vir aqui e ler, certo? Assim também acontece com as imagens processadas por nosso cérebro após adentrarem a retina: quando estamos cansados, há um atraso de milissegundos no processo, o que dá a famosa impressão de déjà vu.

No caso das idéias, a consciência é dominada pelos memes mais bem preparados para serem aceitos por nós. No fundo só pensamos, lemos e ouvimos sobre o que queremos; mesmo com técnicas de meditação, nas quais se pensa “o nada” – isso também é pensar. Podemos não evitar pensar, mas escolhemos, sim, no que pensar. Mesmo as idéias que negamos em vigília e nos vêm em sonhos, desfiguradas, são de nosso conhecimento: todo trauma, clichê (no sentido psicológico, claro) ou recalque tem origem consciente, pois, salvo nossas limitações e facticidades (instintos, criação, contingências, genética), não há uma natureza humana, não há conteúdo inato no ser. Sendo a consciência o conhecimento que se tem de si, é impossível provar qualquer presciência além da própria.

A consciência só existe projetada no mundo, na forma de emoções, cuja antecipação mostra que o homem está sempre voltado para fora e além de si. É um ser-para-o-mundo que pode ser estudado psicologicamente pelos fenômenos – que denunciam a si mesmos, aquilo cuja vontade é precisamente aparência, e não sua representação ou vontade (como cria, por exemplo, Schopenhauer).

A intencionalidade é condição sine qua non da consciência, desde o cogito cartesiano; senão ela seria mero depósito de objetos. Porém ela dá sentido às coisas: todo ato psíquico visa a um objeto; não existe consciência sem fenômeno e vice-versa.

Como no empirismo, a redução fenomenológica (epoquê) preconiza que a realidade deve ser descrita tal como se apresenta a nossa observação pura. O ego descoberto pela reflexão é uma criação; o próprio self é objeto transcendente voltado para o mundo, ausente de pressupostos e do excessivo apego freudiano à objetividade.

Freud desconsidera a base biológica da mente, o que contraria a etologia, fundada por Darwin em A Expressão Das Emoções No Homem E Nos Animais (1872) e magistralmente conduzida ao polêmico ápice, mais de cem anos depois, em 1976, pelo etólogo Richard Dawkins, com O Gene Egoísta. Para ele, “a psicologia só faz sentido no contexto da evolução. As espécies aprimoraram seu comportamento de forma a resistir melhor à seleção natural”. Já para Sam Gosling, professor da Universidade do Texas e fundador do Instituto de Personalidade Animal, “tudo que nos separa dos animais é a personalidade um pouco mais complexa e a capacidade de pensar no futuro" (o que leva à angústia da existência).

Os genes incutem em nós (e em outros animais) tendência comportamentais que ajudem ambos (os genes e nós, suas “máquinas de replicação”) a sobreviver pelo menos o suficiente para ultrapassar a idade de procriar. Tudo, é claro, fortuitamente, de acordo com as imprevisibilidades das mutações genéticas (intencionalidade, só na consciência, que, aliás, é outra estratégia evolutiva que deu certo).

Assim podemos dizer que esse pensar-o-futuro, essa compreensão da finitude, essa preocupação com a existência (e seu fim, a morte) seja o mais antigo e bem-sucedido dos memes, visto que é anterior a Deus (exemplo clássico), tendo este surgido exatamente para responder às questões existenciais. Seria uma forma mais coerente da teoria jungiana do inconsciente coletivo: não há idéias transmitidas espiritualmente (ou seja como for), e sim, por serem atraentes (para o bem ou para o mal) à nossa consciência é que não há como não pensá-las.

No entanto cada ato do indivíduo revela, sim, aquilo que, de fato, ele é; os tais atos-falhos confirmam a essência eternamente em construção do indivíduo, assim como os problemas da sexualidade e demais traumas revelam os conflitos do ser-com (coexistência com os outros).

A origem desses complexos é consciente, advinda da má-fé, porque a mente não pode recalcar o que desconhece. As estruturas imediatas da consciência são a transcendência (para-o-mundo) e a temporalidade (tempo = em-si + para-si), deixando claro que, sartreanamente falando:

– ser-em-si = existência;
– ser-para-si = consciência;
– ser-para-o-outro (para-o-mundo) = essência;
– ser-com = coexistência.

Uma vez que o ser-em-si torna-se para-si, está aberto o caminho para-o-mundo, na construção de sua essência. E essa essência, embora livre, é sempre sitiada. Existir já é estar engajado, ser feliz já é ser culpado, até a não-escolha é uma escolha; assim resta optar de qual lado você irá lutar, dentro das possibilidades do ser (seguindo o cartesianismo nesse ponto): a liberdade é o único fundamento do ser. Sem ele seríamos como uma pedra, que sequer existe, apenas é, sem outras possibilidades.

“É possível que ainda outra qualidade única do homem seja a capacidade de altruísmo verdadeiro, desinteressado e genuíno.” (Richard Dawkins)

Essa realização pode se dar de diversas formas, de acordo com a linha filosófica escolhida (obviamente que estou me concentrando nos pré-existencialistas e existencialistas). Vejamos como cada um imagina a realização:

– Schopenhauer: superar a dor, sublimar o sofrimento, influenciado pela filosofia hindu.

Nietzsche: destruir todos os valores e começar do zero, passando do homem ao além-do-homem.

Heidegger: também sob influência de filosofias orientais, libertar-se do apego às coisas materiais e preparar-se para a morte (quando o ser enfim se realiza).

Kierkegaard: fazer o “grande salto de fé” e confiar em Deus ("O absurdo é o pecado sem Deus” – Camus).

Sartre: engajar-se num projeto, seja de arte (para Nietzsche a arte é apenas fuga), seja de política (mas enquanto Nietzsche pensava os valores da sociedade, Sartre pensa primeiro os do indivíduo).

Camus: aceitar o absurdo e dele mesmo extrair o sentido na falta de sentido (a arte não é solução para o absurdo, mas sintoma dele).

Antes de prosseguir, vale contestar conceitos de três grandes filósofos que, mesmo com certas discordâncias, influenciaram o existencialismo.

Descartes: para ele, havia idéias inatas, como a existência de um ser perfeito, o que demonstraria a necessidade de sua existência.

Kant: o que para Sartre é o engajamento, para Kant é o "imperativo categórico" (nada que não tenha já sido previsto pela "regra de ouro" confucionista), inato, e não como forma de liberdade.

Hegel: seu cogito era para-si = em-si; não havia como o ser mudar, individualmente, sua essência, desvencilhando-se do espírito do mundo.

Porém Hegel, para os existencialistas, além de “acertar” na idéia de que a filosofia começa pela ruína de um mundo real e pelo desinteresse na vida pública (a consciência, para-si, nadificando as coisas, faz com que o mundo exista), já esboçava a idéia de que o ser já continha em si a idéia de não-ser. Só que foi criticado por abstrair-se da própria consciência para tornar seu ser semelhante ao dos outros, esquecendo de sua própria existência (para Sartre, “a origem da emoção é uma degradação espontânea da consciência diante do mundo.”).

Podemos, no entanto, relacionar sua dialética com o existencialismo da seguinte forma:

– tese (presença de si, eu, real) + antítese (ausência de si, não-eu, ideal) = síntese (tempo).

(Camus vê com ressalvas a fenomenologia, pois enxerga em Husserl resquícios de platonismo, paradoxalmente. Assim ele compara-o a Kierkegaard, na questão do “salto”, seja de fé ou de razão pura.)

Lembrando que a fenomenologia estuda os fenômenos interiores considerados ontológicos, para Heiddeger, a existência também está vinculada à temporalidade: a emoção é um modo de ser da consciência, uma das maneiras como ela compreende seu ser-no-mundo. Ou seja, a consciência (ser-no-mundo) faz uso da emoção, para, na existência, construir sua essência e compreendê-la.

Voltemos à questão do tempo então: Husserl não segue a estrutura básica de tempo, mas toma-a como uma dimensão básica da consciência. E esta consciência, voltada para o objeto, segundo Sartre, traz o ser e o nada porque tem o poder de nadificar as coisas: cada escolha feita na vida elimina todas as outras vias possíveis naquele instante.

Pensar é reaprender a ver, a ser atento; é dirigir a própria consciência e fazer de cada idéia e de cada imagem, à maneira de Proust, um lugar privilegiado. Pois se Proust subverteu o fluxo temporal nas artes em 1905, e Husserl fez o mesmo na filosofia em 1900, Einstein demoliu as convenções temporais em 1905, com sua Teoria da Relatividade Especial, segundo a qual o tempo é uma dimensão ligada ao espaço e influenciada pela gravidade, contrariando (pelo menos na “física do muito grande”) o conceito, desde Newton, de que o tempo é um fluxo contínuo e sem volta.

Pensando em Husserl, Proust e Einstein, por que não estrapolar como o físico teórico e pesquisador quântico italiano Carlo Rovelli e dizer: “Estou convencido, mas não posso provar, de que o tempo não existe. Acho que existe um modo consistente de pensar sobre a natureza que não faz uso das noções de espaço e tempo em nível fundamental. E esse modo de pensar vai se tornar útil e convincente. Acho que as noções de espaço e tempo serão úteis apenas como aproximações. Elas são semelhantes a uma noção de ‘superfície da água’, que perde significado quando descrevemos as dinâmicas dos átomos formando água e ar individualmente: se olharmos numa escala bem pequena, não há de fato nenhuma superfície ali. Tenho a convicção de que espaço e tempo são como a superfície da água: convenientes aproximações macroscópicas triviais, mas telas ilusórias e insuficientes que a nossa mente usa para organizar a realidade.”

Tempo, tempo, tempo tempo...

“O pensamento de um homem é, antes de mais nada, sua nostalgia.” (Albert Camus, O Mito De Sísifo)

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Wag the dog.

A "greve dos acontecimentos", termo usado pelo escritor argentino Macedonio Fernandez e citado por Jean Baudrillard para se referir à era dos pseudo-eventos, chegou ao ápice brasileiro no começo deste ano, com a invenção, por parte do PIG, da epidemia (sic) de febre amarela.

Já expliquei, no post anterior, que esta é uma doença silvestre (o que já descaracteriza o termo epidemia); para que ele ocorra na cidade, é preciso que:

01. a fêmea do mosquito Haemagogus (ou, mais raramente, do Sabethes) pique um macaco infectado com o vírus amarílico;

02. o mesmo mosquito pique uma pessoa, não vacinada, que more na cidade e esteja de passagem pela área silvestre endêmica;

03. de volta à cidade, essa mesma pessoa seja picada por um mosquito Aedes aegypt (puta zica do caralho), saudável ou com dengue (zica-mór), tanto faz;

04. esse mosquito pique alguém que também não tenha sido vacinada.

Essa é uma combinação tão fortuita que não ocorre desde 1942.

Pois a mídia ignorou tudo isso, diante de casos de febre amarela silvestre, em número dentro das estatísticas – sim, ninguém vai pesquisar cura para doença que só mata caipira pobre, então é normal que morra uma dezena deles anualmente nos grotões Brasil adentro – e da morte de alguns macacos (alguns, aliás, pela ignorância do povo alarmado sem necessidade), começou a noticiar uma hecatombe virótica nas asas de um mosquitinho. Colunistas incentivando a corrida aos postos de saúde, apresentadores de TV dizendo meias-verdades (que o mosquito da dengue pode transmitir a doença, porém sem mencionar as condições quase miraculosas para que isso aconteça) e, numa profecia auto-realizável, o caos acabou instaurado a ponto de serem internadas duas pessoas por “revacinação”.

Num país minimamente sério e/ou com um governo menos medroso, choveriam processos contra os Frias, os Marinhos, os Civitas e os Mesquitas. Mas claro que, como estamos no Brasil, onde, desde que o PT ascendeu a Presidência, a imprensa é o primeiro, segundo, terceiro e quarto poder, ocorre o absurdo de a Folha e o Estado bancarem o joão-sem-braço e publicarem matérias dizendo que sim, a situação está exagerada, só que a culpa é – pasmem! – do governo Lula, que iniciou a vacinação em massa. Caso o Ministério da Saúde não fizesse nada, seria culpado. Como fez, é culpado do mesmo jeito.

Nem as mais recônditas cavernas de Platão poderiam engendrar tamanho simulacro, tamanha dissuasão. É o agenda-setting sofrendo bizarras mutações e entrando no campo da hiper-realidade. Eis a neotevê (neojornal, neo-revista) preconizada por Umberto Eco: invertidas todas as ordens, os fatos agora existem porque são noticiados pela mídia; aliás os fatos não mais acontecem. São criados e repetidos ciclicamente até a auto-realização. É um vir-a-ser já esvaziado de qualquer essência, um blefe que, dissuadindo a História, faz com que ela siga negativamente (tanto no sentido cartesiano quanto no hegeliano). É o vanish-point, a precessão do buraco-negro epistemológico que transcende qualquer ontologia. Loop, eterno retorno a coisa alguma, cobra mordendo o próprio rabo. O Brasil virou artifício de metalinguagem da imprensa. Monkey see, monkey do.

A favela é a nova senzala; correntes da velha tribo. Doença que chegou da África com os navios-negreiros, de carona em carrapatos e mosquitos, por volta de 1850. E a sala é a nova cela – prisioneiros das grades do vídeo. Hoje serve de matéria-prima para os interesses políticos e para os desinteresses em curar a nação doente de cultura e ética.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

E há só um caminho para a vida, que é a vida.

“Existencialista / Com toda razão / Só faz o que manda / O seu coração.”

Não pedimos para nascer e encontramo-nos sós aqui, por desejo e de outrem, rodeados de existência e contingência por todos os lados e todas as dimensões.

Mais que o vir do nada ou o ir para o nada, mais do que as questões de nascimento e morte, o que mais angustia e escandaliza é o meio, o existir em-si. É a náusea, a sensação de absurdo ante não só a finitude/ transitoriedade, mas a gratuidade sem sentido da vida. Nascemos, morremos e tanto faz como tanto fez.

Vem o desespero, a vontade de fugir para a infância ou o útero materno, quando ainda não nos dávamos conta da existência. Porém isso é impossível, e nossos genes egoístas (pois estamos minimamente sãos) não nos permitem o suicídio (sem entrar nas implicações morais do ato perante a cultura e a sociedade); então resta viver.

E é neste momento que começamos a buscar nossa essência no existir. Estamos sós, abandonados na vida, rodeados de facticidades. Pois a vida é o que fazemos do que fazem de nos, ou seja, são relevantes não só as contingências anteriores ao início da construção essencial, mas o resultado de nossas decisões e das decisões de todas as outras pessoas, numa interação total e irrestritamente caótica. O destino é tudo isso que fazemos e tudo isso que não pedimos; não criamos o mundo, nem a nós mesmos (fisicamente falando), mas podemos recriar a ambos – um com a presença e outro com as atitudes.

E é um processo contínuo, eterno retorno em que, no niilismo dos projetos, a essência é destruída, transvalorada, para ser reerguida indefinidamente. O homem é uma ponte, não uma partida ou finalidade. Prometeu sem arrependimento, Sísifo feliz com sua rocha. Ver-se solitário, inútil... e livre. Mais do que em qualquer plano de vida, mais do que a arte, mais do que no amor, a busca em-si é a própria finalidade. Sejamos inteiros em nossa incompletude, vivendo cada momento de imersão na realidade, com a rocha nos ombros, ou acorrentado nela, qual uma cruz redentora. Sem esperança, sem medo, sem desespero. O sentido da vida é ela-mesma, a todo instante tornar-se o que se é. Parodiando Simone de Beauvoir, on ne naît pás homme: on le devient.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Saturday Night Fever

FOLHA - Não dá para erradicar a febre amarela?
DRAUZIO - É impossível. Só se se puser fogo em todas as florestas, matar todos os macacos.


O Partido da Imprensa Golpista (PIG) cria crises, como se sabe; depois do caos aéreo, vem o apagão (tudo bem que apagão de verdade foi em 2001, com FHC) e, agora, o caos da vacinação, destinada a alarmar a população, criar filas intermináveis na porta dos postos de saúde, espantar os turistas e desestabilizar o governo Lula.

Vejamos por exemplo esta matéria da Folha. Alguns trechos:

"Com sua licença, vou usar este espaço para fazer um apelo para você que mora no Brasil, não importa onde: vacine-se contra a febre amarela! Não deixe para amanhã, depois, semana que vem... Vacine-se logo!"

"O fantasma da febre amarela, portanto, paira sobre o país como um alerta num momento crucial, para que a saúde e a educação sejam preservadas antes de tudo o mais. Senão, Lula, o Aedes Aegypti vem, pica e mata sabe-se lá quantos neste ano --e nos seguintes."


Em primeiro lugar, é bom deixar claro que a autora do texto, Eliane Cantanhêde, chefe da sucursal de Brasília da Folha de S.Paulo, é mulher de Gilnei Rampazzo, um dos donos da GW, a produtora que cuidou das últimas campanhas eleitorais de Geraldo Alckmin e de José Serra. Gilnei Rampazzo é sócio de Luiz Gonzales, o marqueteiro escolhido pelo PSDB para coordenar a campanha presidencial de Geraldo Alckmin. Gilnei foi acusado pela Folha de S.Paulo de participar de um esquema de desvio de recursos da Nossa Caixa.

Agora vamos lá.

Impressionante como esses colunistas falam de epidemia com uma facilidade incrível para quem não entende o que quer dizer o termo. Epidemia não é o aparecimento de casos de uma doença no jornal. Uma epidemia só se caracteriza quando ocorre um aumento maior que duas vezes o desvio padrão sobre a incidência média de uma doença nos últimos anos. Ou seja: Incidência média + 2x desvio padrão.

Não vi até agora nenhum jornal mostrar a incidência da febre amarela nos últimos 10 anos para uma comparação. Repare na média de casos do período FHC e Lula, será por isso que ninguém mostra os números? Segundo o Ministério da Saúde:

1996 – 15 casos
1997 – 3 casos
1998 – 34 casos
1999 – 76 casos
2000 – 85 casos e 42 mortes
2001 – 41 casos e 22 mortes
2002 – 15 casos e 6 mortes
2003 – 64 casos e 22 mortes – (58 dos casos no Sudeste)
2004 – 5 casos e 3 mortes
2005 – 3 casos e 3 mortes
2006 – 2 casos e 2 mortes
2007 – 6 casos e 5 mortes


Todos esses casos são da forma de transmissão em área silvestre da febre amarela. Desde a década de 1940 que não há relatos da transmissão urbana da febre amarela. Veja bem, transmissão em zona urbana é diferente de diagnóstico em zona urbana. A forma silvestre é endêmica principalmente nas regiões Norte e Centro-Oeste e se comporta de forma cíclica, com surtos a cada 5-7 anos.

A transmissão em área silvestre é feita pelo mosquito do género Haemagogus, e se dá através, principalmente, de macacos infectados para humanos não imunizados por vacina. A forma urbana é transmitida do homem para homem através do Aedes Aegypti, o mesmo da dengue. O risco de retorno da forma urbana não é novo, e existe desde a década de 1980 quando houve a reintrodução do Aedes Aegypti no Brasil.

Até o momento (15/01/08), apesar de toda histeria, apenas 2 casos foram comprovadamente de febre amarela este ano. E todos contraídos em áreas silvestres. Ou seja, nada de anormal.

Estão noticiando morte de macacos, supostamente com febre amarela, como se isso fosse um sinal de que a doença está fora de controle. O pior, vários dos macacos noticiados tiveram exame negativo para febre amarela. Ou seja, estão noticiando apenas morte de macacos.

Estão noticiando as mortes por febre amarela como um fato novo do governo Lula, como se ninguém morresse da doença nos anos anteriores. Estão confundindo a ausência de casos urbanos com ausência de casos em geral.

Não há epidemia de febre amarela porque continua sendo uma doença silvestre. Ou seja, é preciso ir à mata e ser picado pelo mosquito transmissor – o Haemagogus. Esse mosquito não é o Aedes Aegypti. Os macacos mortos por febre amarela foram contaminados na floresta. Portanto, foram contaminados pelo Haemagogus. As mortes até aqui ocorridas se deram por contaminação direta, na floresta, por picada do mosquito que só vive na floresta.

FOLHA - Qual a dificuldade de achar a cura para febre amarela?
DRAUZIO - É uma doença de pobre, que atinge um número muito pequeno de pessoas.


Enquanto isso, com os protegidos do PIG, tudo vai bem.

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Cordeiro em pele de lobo

Quando eu era adolescente, achava que os neopentecostais (era o auge do crescimento da Igreja Universal e da Igreja da Graça, além do surgimento da Renascer Em Cristo) eram todos uns palermas crédulos à mercê de inescrupulosos pastores estelionatários. Revoltava-me toda aquela manipulação da fraqueza das pessoas. À época eu já era ateu, porém não sabia: julgava-me panteísta ou deísta, por falta de orientação e de denominações melhores.

[Hoje vejo que essa passagem gradativa do catolicismo por inércia (por mais que eu tentasse crer, acreditasse crer, participasse como coroinha e até dando aulas de catecismo), que durou quase quinze anos, até eu me firmar como ateu, foi a melhor coisa, pois houve maturação de todas as idéias na cabeça, não houve mágoa, revolta, nada; apenas o descobrimento.]

Não que tenha mudado muita coisa nos dias de hoje: os fiéis continuam otários e os pastores continuam vigaristas; o que mudou foi minha visão dessa relação, a qual percebi não ser apenas de exploração, mas de mutualismo.

Veja só: a pessoa desesperada/preocupada chega a uma dessas suntuosas e modernas igrejas com cara de supermercado, ou mesmo naquelas igrejas de garagem com cadeiras de praia, querendo solução rápida para os problemas – afinal, se fosse uma questão meramente espiritual, teria ido a uma igreja católica, já que no Brasil praticamente todo mundo é batizado no catolicismo – e, assim, já mostrando ser uma pessoa com tendência à credulidade, pois acredita que problemas concretos (sejam familiares, profissionais ou de saúde) possam ser resolvidos assim, de uma hora para a outra, sem esforço pessoal.

Pois o pastor, bonitão, lustroso e bem vestido, lhe oferece, além de toda aquela lábia carinhosa e cheia de atenção, uma solução fácil: não é preciso sacrifício pessoal ou esforço espiritual/físico, pois é tudo questão de que há um encosto na vida dele: é só fazer uma aposta com Deus (“ser um gideão” na Renascer, “fazer um sacrifício” na Universal), colocando dinheiro no bozó e lançando os dados, pois Jeová irá pegar o dinheiro (pelas mãos do pastor) e recompensar sua fé com a realização plenas dos desejos (especialmente os materiais – teologia da prosperidade).

Veja só que há uma troca aí: enquanto o pastor recebe a grana do otário (indivíduo ingênuo, de boa-fé, dizem os dicionários), dá a ele o conforto, a segurança: olha, não é você que é um bêbado (ou uma baranga chata); seu cônjuge te abandonou por causa dos encostos; você não está doente porque fuma muito e faz pouco exercício, nem perdeu o emprego porque seu chefe implicou com você ou porque é um incompetente mesmo; nem seu parente morreu porque ora, todo mundo morre um dia; é tudo culpa dos encostos. Mas Deus há de ser testado (!), pois você pagou e quer o serviço.

O problema é que fica difícil reclamar com o prestador de serviço quando a coisa falha (isto é, invariavelmente): o pastor, como um atendente de telemarketing de Deus, jamais passa a reclamação ao superior e diz que faltou fé, que o fiel precisa ser mais fiel, orar mais e, especialmente, dar mais dinheiro.

Em troca, ele recebe um bode preto expiatório, o próprio Satanás, para livrá-lo de todas as culpas. O fiel sabe que está sendo enganado; inconscientemente, mas sabe; e como sartreano, questiono, já disse, a impenetrabilidade do inconsciente – no fundo sempre sabemos, basta examinarmos nossa consciência com honestidade. Mas o fiel prefere continuar na má-fé, no auto-engano, pois é mais cômodo.

É mais reconfortante ter alguém dizendo que a culpa não é sua, que você pode ser rico e feliz aqui na Terra mesmo (‘tá certo que não entendo como você pode dar dinheiro e ficar com mais dinheiro, deve ser algum fundo divino de investimento); e se qualquer fiasco é falta de fé (grana), qualquer sucesso é automaticamente atribuído ao “esforço” de fé, não pessoal (tudo bem, pois o perfil de quem vai a essas igrejas não é exatamente o de pessoas esforçadas e/ou com grande auto-estima).

Portanto me parece bem razoável essa auto-ajuda com palestras motivacionais disfarçadas de igreja; só há trambiqueiros porque há otários pedindo para serem enganados, para serem expiados de suas culpas, para se livrarem de responsabilidades, para não encararem a verdade. Enfim, ambos se merecem.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

O concreto já rachou.

Estou atrasado, eu sei, era pr’esta porra sair ano passado, as idéias estavam na cabeça e os links no Bloco de Notas fazia tempo, mas deu preguiça; e, enfim, ninguém vem aqui mesmo, portanto se é para falar sozinho, me dou o direito de fazê-lo na hora em que eu quiser. Hmpf.

Aproveitei o centenário do Niemeyer para fazer alguns comentários – não sem antes estudar um pouco de arquitetura moderna, assunto no qual, para variar, eu era ignorante – sobre a obra dele, especialmente no que tange a São Paulo, já que é o que conheço dele pessoalmente (e sei se funciona ou não). E lá fui eu estudar sobre Le Corbusier, concreto armado e Lúcio Costa (não só nestes links, evidentemente, mas nos imprescindíveis livros físicos) e ler uns estudos que sobre a obra do Oscar.

Brasília, do que se vê e sabe, é uma Xangrilá feita para carros em vez de pessoas, com tudo extremamente árido, distante, impessoal, faraônico. Para a Praça do Patriarca, em São Paulo, ele projetou uma cobertura horrível em forma de til que deixou ainda pior aquele lugar já tão sem graça. Na Ilha Porchat, em São Vicente (e não em Santos, como eu havia dito), tem um negócio bem parecido, feito com clara má vontade, num mirante. Em Curitiba, num museu cujo nome me escapa à memória, um bizarro olho gigante. E minha maior implicância com ele, verdadeiro crime ambiental, que é o Memorial da América Latina. Além de merecer prisão perpétua (morando lá mesmo) por encher com mais concreto nossa cidade tão cinzenta, tudo foi projetado (num só dia, dizem) tão impessoalmente que parece de sacanagem: todo o espaço é gradeado, com portões minúsculos e sinalização inexistente, além de edificações distantes umas das outras (todas sempre de portas fechadas e vidros escuros) e um "frio palmeiral de cimento”, como disse Caê do belíssimo Aterro do Flamengo (feito por Burle Marx, esse sim um paisagista que integra as obras com o meio) – será que o Caetano, mais de 20 anos depois, viu o Memorial e se desculpou com o Aterro? –. Enfim uma excrescência.

Como disse um dos principais críticos de arquitetura do mundo, o espanhol Josep Maria Montaner, "existe realmente tal mitificação sobre sua figura no Brasil, razão por que ainda não há livros bons e críticos o suficiente sobre ele. Continuam dominando os panegíricos sentimentais e nacionalistas."

Porém aqui no Brasil há um excesso de complacência (como ocorre com pessoas que são mitificadas em vida, como Chico Buarque, João Gilberto e Fernanda Montenegro): sendo praticamente unanimidades, tudo que fazem é genial e acima de críticas Veja só o que se se diz do nefando Memorial e de outras obras, por exemplo:

“E, se ainda puder fazer essa viga protendida e resolver tudo em apenas dois apoios extremos, com cascas de concreto armado repousando nela, terá os protótipos dos pavilhões que Niemeyer criou no Memorial da América Latina (1987). O Memorial, portanto, é um exercício de construção, como se juntasse uma pedrinha aqui, outra ali, e pegasse os templos astecas e incas para dizer que agora nós vamos arrumar as pedras de outro modo.” (José Guilherme Wisnik)

"O Palácio dos Arcos é um deslumbramento, a catedral de Brasília é um espetáculo, o MAC de Niterói é uma obra de arte, o Teatro do Ibirapuera é um monumento. Se funcionam é outra questão, irrelevante para a função poética." (Teixeira Coelho)

Como assim? Então é só sair fazendo desenhos divertidos, cheios de leveza e poesia, e a paisagem em volta, com sua população, que se foda? Poética inútil com dinheiro público?

Concluo, pois, que Oscar é um ótimo artista plástico, quiçá um respeitável poeta. Mas é mau arquiteto.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

De modo que a vida é um circo de feras.

Estudando História da Arte, como qualquer outra coisa, costumo fazer associações um tanto automáticas que são tão idiossincráticas que me envergonham um pouco, por mais que possam fazer sentido; por isso as mantenho na mente ou, se muito, no papel do inconfessável. Ver, n’A Dança, de Matisse, os ornamentos de uma ânfora grega com seus motivos pagãos e olímpicos, por exemplo, assim como o mesmo pintor curva o espaço-tempo em Natureza-Morta Em Vermelho De Veneza (1908) – não achei reprodução dessa porra na net –, três anos após Einstein formular a célebre Teoria Da Relatividade. Teoria esta que, segundo minha professora (chata) de História Da Arte na faculdade, também influenciou o Cubismo na representação de todas as perspectivas do mesmo plano, já que o tempo-espaço podia ser deformado pela gravidade e as viagens no tempo eram teoricamente possíveis, tornando todas as perspectivas possíveis de serem vistas por um observador de fora do sistema.

Mas, vejam só, virando mais uma página do livro que estou lendo, vejo que a obra citada no começo realmente remete “aos combates dos gregos e das amazonas de 5 a.C.” e “às moças exercitando-se nos Jogos [Olímpicos] do século 2”. Vejo também que, em outras obras, Matisse não ignorou as Olimpíadas de 1900 em Paris.

Devo me regozijar por não ser tão absurdamente louco ou lamentar a falta de originalidade do meu pensamento quanto à pintura easy-viewing de Matisse [nada a ver com seu apelido de fauve (fera)]?

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Eternidades da semana

É choque de gestão no Sesc (o da Pompéia), é choque de gestão no palácio do presidente-eleito, é choque de gestão no metrô (hoje e sempre), é choque de gestão na segurança... logo teremos um apagão de tanto choque. Aí, apagão, é claro, será culpa do Sapo Barbudo.