“Quando se vive, nada acontece. Os cenários mudam, as pessoas entram e saem, eis tudo. Nunca há começos. Os dias se sucedem aos dias,, sem rima, sem solução: é uma soma monótona e interminável. (...) Viver é isso. Mas quando se narra a vida, tudo muda: simplesmente é uma mudança que ninguém nota: a prova é que se fala de histórias verdadeiras: os acontecimentos ocorrem num sentido e nós os narramos em sentido inverso. (...) Os instantes deixaram de se empilhar uns sobre os outros ao acaso, foram abocanhados pelo fim da história que os atrai, e cada um deles atrais por sua vez o instante que o precede. (...) E temos a impressão de que o herói viveu todos os detalhes dessa noite como anunciações, como promessas, ou até mesmo de que vivia somente aqueles que eram promessas, cego e surdo para tudo que não anunciava a aventura. Esquecemos que o futuro ainda não estava ali; o sujeito passava numa noite sem presságios, que lhe proporcionava de cambulhada suas riquezas monótonas, e ele não escolhia. Quis que os momentos de minha vida tivessem uma seqüência e uma ordem como os de uma vida que recordamos. O mesmo, ou quase, que tentar capturar o tempo.” (Jean-Paul Sartre, A Náusea)
Incontáveis pensamentos cruzam minha mente e se cruzam nos estímulos elétricos e nas sinapses neuroniais; porém jamais há simultaneidade – cada fagulha de pensamento carrega em si a singularidade infinitesimal, privilégio da área nobre da consciência, para então continuar o circuito (retornando ou não), dando lugar a outro pensar ou sentir. E tais idéias, quando surgem ou reaparecem, são sempre devido a estímulos externos – toda consciência é consciência de alguma coisa. Ainda que tudo seja tão rápido que possa parecer instantâneo – seu cérebro, por exemplo, já processou estas linhas meio segundo antes de você perceber que o está fazendo e apreendê-lo o sentido – o processo é consciente, ainda que, digamos, automático, habitual. É uma área periférica do cérebro que cuida disso; porém foi você que decidiu vir aqui e ler, certo? Assim também acontece com as imagens processadas por nosso cérebro após adentrarem a retina: quando estamos cansados, há um atraso de milissegundos no processo, o que dá a famosa impressão de déjà vu.
No caso das idéias, a consciência é dominada pelos memes mais bem preparados para serem aceitos por nós. No fundo só pensamos, lemos e ouvimos sobre o que queremos; mesmo com técnicas de meditação, nas quais se pensa “o nada” – isso também é pensar. Podemos não evitar pensar, mas escolhemos, sim, no que pensar. Mesmo as idéias que negamos em vigília e nos vêm em sonhos, desfiguradas, são de nosso conhecimento: todo trauma, clichê (no sentido psicológico, claro) ou recalque tem origem consciente, pois, salvo nossas limitações e facticidades (instintos, criação, contingências, genética), não há uma natureza humana, não há conteúdo inato no ser. Sendo a consciência o conhecimento que se tem de si, é impossível provar qualquer presciência além da própria.
A consciência só existe projetada no mundo, na forma de emoções, cuja antecipação mostra que o homem está sempre voltado para fora e além de si. É um ser-para-o-mundo que pode ser estudado psicologicamente pelos fenômenos – que denunciam a si mesmos, aquilo cuja vontade é precisamente aparência, e não sua representação ou vontade (como cria, por exemplo, Schopenhauer).
A intencionalidade é condição sine qua non da consciência, desde o cogito cartesiano; senão ela seria mero depósito de objetos. Porém ela dá sentido às coisas: todo ato psíquico visa a um objeto; não existe consciência sem fenômeno e vice-versa.
Como no empirismo, a redução fenomenológica (epoquê) preconiza que a realidade deve ser descrita tal como se apresenta a nossa observação pura. O ego descoberto pela reflexão é uma criação; o próprio self é objeto transcendente voltado para o mundo, ausente de pressupostos e do excessivo apego freudiano à objetividade.
Freud desconsidera a base biológica da mente, o que contraria a etologia, fundada por Darwin em A Expressão Das Emoções No Homem E Nos Animais (1872) e magistralmente conduzida ao polêmico ápice, mais de cem anos depois, em 1976, pelo etólogo Richard Dawkins, com O Gene Egoísta. Para ele, “a psicologia só faz sentido no contexto da evolução. As espécies aprimoraram seu comportamento de forma a resistir melhor à seleção natural”. Já para Sam Gosling, professor da Universidade do Texas e fundador do Instituto de Personalidade Animal, “tudo que nos separa dos animais é a personalidade um pouco mais complexa e a capacidade de pensar no futuro" (o que leva à angústia da existência).
Os genes incutem em nós (e em outros animais) tendência comportamentais que ajudem ambos (os genes e nós, suas “máquinas de replicação”) a sobreviver pelo menos o suficiente para ultrapassar a idade de procriar. Tudo, é claro, fortuitamente, de acordo com as imprevisibilidades das mutações genéticas (intencionalidade, só na consciência, que, aliás, é outra estratégia evolutiva que deu certo).
Assim podemos dizer que esse pensar-o-futuro, essa compreensão da finitude, essa preocupação com a existência (e seu fim, a morte) seja o mais antigo e bem-sucedido dos memes, visto que é anterior a Deus (exemplo clássico), tendo este surgido exatamente para responder às questões existenciais. Seria uma forma mais coerente da teoria jungiana do inconsciente coletivo: não há idéias transmitidas espiritualmente (ou seja como for), e sim, por serem atraentes (para o bem ou para o mal) à nossa consciência é que não há como não pensá-las.
No entanto cada ato do indivíduo revela, sim, aquilo que, de fato, ele é; os tais atos-falhos confirmam a essência eternamente em construção do indivíduo, assim como os problemas da sexualidade e demais traumas revelam os conflitos do ser-com (coexistência com os outros).
A origem desses complexos é consciente, advinda da má-fé, porque a mente não pode recalcar o que desconhece. As estruturas imediatas da consciência são a transcendência (para-o-mundo) e a temporalidade (tempo = em-si + para-si), deixando claro que, sartreanamente falando:
– ser-em-si = existência;
– ser-para-si = consciência;
– ser-para-o-outro (para-o-mundo) = essência;
– ser-com = coexistência.
Uma vez que o ser-em-si torna-se para-si, está aberto o caminho para-o-mundo, na construção de sua essência. E essa essência, embora livre, é sempre sitiada. Existir já é estar engajado, ser feliz já é ser culpado, até a não-escolha é uma escolha; assim resta optar de qual lado você irá lutar, dentro das possibilidades do ser (seguindo o cartesianismo nesse ponto): a liberdade é o único fundamento do ser. Sem ele seríamos como uma pedra, que sequer existe, apenas é, sem outras possibilidades.
“É possível que ainda outra qualidade única do homem seja a capacidade de altruísmo verdadeiro, desinteressado e genuíno.” (Richard Dawkins)
Essa realização pode se dar de diversas formas, de acordo com a linha filosófica escolhida (obviamente que estou me concentrando nos pré-existencialistas e existencialistas). Vejamos como cada um imagina a realização:
– Schopenhauer: superar a dor, sublimar o sofrimento, influenciado pela filosofia hindu.
– Nietzsche: destruir todos os valores e começar do zero, passando do homem ao além-do-homem.
– Heidegger: também sob influência de filosofias orientais, libertar-se do apego às coisas materiais e preparar-se para a morte (quando o ser enfim se realiza).
– Kierkegaard: fazer o “grande salto de fé” e confiar em Deus ("O absurdo é o pecado sem Deus” – Camus).
– Sartre: engajar-se num projeto, seja de arte (para Nietzsche a arte é apenas fuga), seja de política (mas enquanto Nietzsche pensava os valores da sociedade, Sartre pensa primeiro os do indivíduo).
– Camus: aceitar o absurdo e dele mesmo extrair o sentido na falta de sentido (a arte não é solução para o absurdo, mas sintoma dele).
Antes de prosseguir, vale contestar conceitos de três grandes filósofos que, mesmo com certas discordâncias, influenciaram o existencialismo.
– Descartes: para ele, havia idéias inatas, como a existência de um ser perfeito, o que demonstraria a necessidade de sua existência.
– Kant: o que para Sartre é o engajamento, para Kant é o "imperativo categórico" (nada que não tenha já sido previsto pela "regra de ouro" confucionista), inato, e não como forma de liberdade.
– Hegel: seu cogito era para-si = em-si; não havia como o ser mudar, individualmente, sua essência, desvencilhando-se do espírito do mundo.
Porém Hegel, para os existencialistas, além de “acertar” na idéia de que a filosofia começa pela ruína de um mundo real e pelo desinteresse na vida pública (a consciência, para-si, nadificando as coisas, faz com que o mundo exista), já esboçava a idéia de que o ser já continha em si a idéia de não-ser. Só que foi criticado por abstrair-se da própria consciência para tornar seu ser semelhante ao dos outros, esquecendo de sua própria existência (para Sartre, “a origem da emoção é uma degradação espontânea da consciência diante do mundo.”).
Podemos, no entanto, relacionar sua dialética com o existencialismo da seguinte forma:
– tese (presença de si, eu, real) + antítese (ausência de si, não-eu, ideal) = síntese (tempo).
(Camus vê com ressalvas a fenomenologia, pois enxerga em Husserl resquícios de platonismo, paradoxalmente. Assim ele compara-o a Kierkegaard, na questão do “salto”, seja de fé ou de razão pura.)
Lembrando que a fenomenologia estuda os fenômenos interiores considerados ontológicos, para Heiddeger, a existência também está vinculada à temporalidade: a emoção é um modo de ser da consciência, uma das maneiras como ela compreende seu ser-no-mundo. Ou seja, a consciência (ser-no-mundo) faz uso da emoção, para, na existência, construir sua essência e compreendê-la.
Voltemos à questão do tempo então: Husserl não segue a estrutura básica de tempo, mas toma-a como uma dimensão básica da consciência. E esta consciência, voltada para o objeto, segundo Sartre, traz o ser e o nada porque tem o poder de nadificar as coisas: cada escolha feita na vida elimina todas as outras vias possíveis naquele instante.
Pensar é reaprender a ver, a ser atento; é dirigir a própria consciência e fazer de cada idéia e de cada imagem, à maneira de Proust, um lugar privilegiado. Pois se Proust subverteu o fluxo temporal nas artes em 1905, e Husserl fez o mesmo na filosofia em 1900, Einstein demoliu as convenções temporais em 1905, com sua Teoria da Relatividade Especial, segundo a qual o tempo é uma dimensão ligada ao espaço e influenciada pela gravidade, contrariando (pelo menos na “física do muito grande”) o conceito, desde Newton, de que o tempo é um fluxo contínuo e sem volta.
Pensando em Husserl, Proust e Einstein, por que não estrapolar como o físico teórico e pesquisador quântico italiano Carlo Rovelli e dizer: “Estou convencido, mas não posso provar, de que o tempo não existe. Acho que existe um modo consistente de pensar sobre a natureza que não faz uso das noções de espaço e tempo em nível fundamental. E esse modo de pensar vai se tornar útil e convincente. Acho que as noções de espaço e tempo serão úteis apenas como aproximações. Elas são semelhantes a uma noção de ‘superfície da água’, que perde significado quando descrevemos as dinâmicas dos átomos formando água e ar individualmente: se olharmos numa escala bem pequena, não há de fato nenhuma superfície ali. Tenho a convicção de que espaço e tempo são como a superfície da água: convenientes aproximações macroscópicas triviais, mas telas ilusórias e insuficientes que a nossa mente usa para organizar a realidade.”
Tempo, tempo, tempo tempo...
“O pensamento de um homem é, antes de mais nada, sua nostalgia.” (Albert Camus, O Mito De Sísifo)
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