"O Tito está morrendo na caixa lá fora. Coloquei jornal porque tem mosca azul tentando chegar nele. Toma conta dele até eu chegar – espero que ele me aguarde... ou não. Mother."
Esse bilhete, na mesa da cozinha, foi o terceiro contato sensorial com este mundo-sexta-feira, logo após o abrir de olhos e o movimento de tirar os pés da cama e colocá-los no chão.
Era o início do último dia de Tito (nome dado por minha mãe – gato pra mim ou é só Gato ou tem nomes criativos como Branco e Amarelo), gato meio-siamês velho-de-guerra daqui de casa. Várias coisas a serem resolvidas comigo e com os outros, e o gato lá, insistindo em se levantar mesmo sem força alguma, só para cambalear, ofegante, espalhando o sangue escuro pela boca e tombar o corpo esquelético no chão duro.
Durante toda a manhã, troquei seus panos de deitar, levei-o de volta à caixa-cama, limpei o que dava para limpar da sua boca pútrida, afastei as moscas, atraídas pelo calor e por seu estado agonizante. Dei-lhe água em gotas que eu apanhava com a mão e deixava correr pelos dedos até os respingos lhe atingirem a língua empapada de sangue e pus.
Conforme a metade do dia se aproximava, seu desespero era evidente... os olhos vidrados, a respiração por um fio, o sangue pingando, excrementos já saindo sem esforço, mas uma insistência em sair de cama e ir ao chão, talvez pelo frescor.
Resolvi atender seu pedido e sentei ao lado dele, não só por causa das moscas-bicheiras, mas para lhe fazer companhia. Fiz nele seus carinhos preferidos naquele pelo ralo, naquela pele como um trapo estirado numa cruz feita de ossos, estandarte da impiedosa e impermamente natureza: cocei levemente a tampa de sua cabeça, as costas – cuja coluna proeminente quase sem carne por cima me dava a sensação de tamborilar uma engrenagem – e o que ele mais gostava, no pescoço, mesmo com toda aquela sujeira (claro que fui cuidadoso para não machucá-lo).
Duas horas de avanço na tarde, Sol rumo ao oeste, ele parou de se mexer “normalmente”, para iniciar os últimos espasmos, enquanto o sangue e os excrementos saíam em jorros, a boca, num abrir inexorável, incoercível, de dor suprema, indizível, se abria além do possível num desprendimento das peles internas, emitindo um ganido fantasmagórico. Ao seu lado, impassível, eu apenas continuava a lhe fazer carinho e lhe acalmava os membros em convulsão. Como eu torcia pr'aquele sangue parar de espirrar, pr'aquele corpo magérrimo parar de tremer logo!...
Expirou às 14h18min.
Enquanto seu corpo ainda emitia sons guturais do ar que ainda lhe havia nos pulmões e seu corpo ressequido se agitava em rigor-mortis, fiz algo não só por ele, mas por minha mãe, que havia pedido para eu cuidar dele.
Sei o quão difícil vai ser quando ela chegar do trabalho, daqui a menos de uma hora. Só os deuses que não existem sabem o quanto ela fez pr'esse gato viver, desde que chegou aqui, há uns cinco anos, já velho e caindo aos pedaços (literalmente). Deu comida, tratou, deu banhos semanais, remédio e comida na boca, gastou fortunas no veterinário, perdeu tantas horas lhe fazendo companhia.
Ah, e como ele retribuía honestamente! Esperava-a chegar do trabalho, indo da impaciência no quintal desde o meio da tarde até esperá-la lá embaixo, no portão, só para subir junto com minha mãe. Ficava do lado dela esperando não só para beber leite após o jantar, mas para ir com ela à sala “ver o Jornal Nacional”. Minha mãe ficava com pena de colocá-lo para fora em noites de frio a ponto de passar a ferro a almofada da pequena cama dele – ele só não dormia dentro por falta de modos fisiológicos, digamos – e, até o último dia, gosto de crer que ele cambaleava esperando minha mãe chegar. Ela não lerá isto aqui, mas gostaria que ela soubesse que ela fez o possível para esperá-la uma vez mais.
Agora está devidamente limpo, coberto por minhas flores preferidas (que trabalho pra depenar o quintal até juntar o tanto de florais para cobri-lo) e com a caixa protegida e desinfetada (contra moscas e afins) à espera da “mãe” dele.
Seu cadáver sépia coberto de flores amarelas; nos olhos vazios e já opacos, delicadas florezinhas azuladas. E, em sua boca adoecida, já em descanso nos coágulos enegrecendo, duas azáleas, minhas flores prediletas, as últimas do jardim.
[Isso que fiz hoje não foi nada comparado a todo esforço dela. Foi só um mísero carinho da minha parte, em respeito a tudo que ela fez, ao seu caráter e à sua bondade.]
Os instantes vão caindo, pancada a pancada, sucessivamente. Hoje eu que a espero, apreensivo, temendo e sofrendo antecipadamente pelo que ela irá sentir. E só eu, só eu que estava lá, sei como foi.
Mas possa minha mãe saber que, em nossa memória, ele estará sempre colorido e perfumado à espera dela, nos dias que serão para sempre.
2 comentários:
Que texto bonito, meu amigo. O final ficou muito, muito tocante. Cheguei a engolir em seco, te juro.
Descansa em paz agora, o bichinho. E não há dúvida de que, seja lá o que o recebeu do lado de lá (alguma-coisa, ou o nada), nenhum momento de convivência foi em vão. Porque nunca é.
Abraço, e fica numa boa, nobre guerreiro!
='( eu o conheci ...
mana tiste... ='(
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